Sobre a Lei 13.438, de 26/4/17: Riscos e desafios

Sobre a Lei 13.438, de 26/4/17: Riscos e desafios

SOBRE A LEI 13.438, de 26/4/17: RISCOS E DESAFIOS

Em abril de 2017, foi sancionada a Lei 13.438, que altera o artigo 14° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabelece, em seu artigo único, que TODAS as crianças de 0 até 18 meses de vida sejam submetidas, nas consultas pediátricas, a protocolo ou outro instrumento para detecção de risco psíquico.

O artigo 14° do ECA, originalmente, afirmava que: “O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos”.

Ao referido artigo, foi acrescentado, pela nova lei, o seguinte parágrafo:

“É obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico”. (Grifos nossos).

Qual cidadão seria contra a detecção em tempo hábil de problemas que afetam as pequenas crianças brasileiras? Certamente nenhum.

Tem sido consenso entre profissionais e pesquisadores da saúde pública a necessidade do desenvolvimento de ações de promoção de saúde/saúde mental para o real avanço no campo do cuidado integral às crianças e adolescentes. Esforços vêm sendo empreendidos para incluir ações de promoção de saúde na agenda das redes de cuidado à infância, onde a questão da detecção de dificuldades no processo de constituição psíquica nos tempos iniciais da vida ganha destaque e relevância, convocando a construção de estratégias que possam contribuir para a superação de agravos, a partir de ações territoriais, colaborativas e intersetoriais, que incluam o trabalho conjunto pais/cuidadores-bebê, e considerem as peculiaridades culturais e os determinantes sociais de saúde envolvidos na construção de laços afetivos-parentais e nos modos de cuidado, quando necessários. O Marco Legal da Primeira Infância, e

documentos como a Linha de Cuidado para Atenção às Pessoas com TEA e suas Famílias na Rede de Atenção Psicossocial do SUS, são alguns exemplos do esforço mencionado.

Não obstante os esforços, ainda há, no país, uma enorme defasagem entre as necessidades de acompanhamento e a disponibilidade de recursos para fazer frente a elas. Em relação a esta defasagem, certamente também não haveria posições contrárias.

Entretanto, mesmo considerando a necessidade de avanços em estratégias para superar o acesso tardio de crianças ao cuidado (quando este é necessário), visando reduzir danos aos agravos, a promulgação de uma Lei para este fim, que legisla em exterioridade ao próprio SUS, que realça a detecção de riscos psíquicos – através da utilização de protocolos padronizados -, sem ser precedida por um amplo debate sobre efeitos iatrogênicos que poderá produzir, sobre os modos de sua execução e garantia de estruturas de atenção e acompanhamento nos inúmeros territórios brasileiros, requer uma análise aprofundada e amplo debate para que ela própria, paradoxalmente, não produza danos à infância brasileira.

O caminho da Lei:

A lei 13.438 foi proposta através do Projeto de Lei 451, em 2011, pela Senadora Angela Portela. Depois de cumprir tramitação formal, em 2013 o referido projeto foi apensado projeto de lei ao PL 6687/09, por “tratarem de matérias correlatas”. Durante quatro anos ficou sem movimentação, até que em março de 2017, o Deputado Delegado Francischini requereu a desapensação dos projetos, e o PL 5501/13 (nova numeração do projeto de lei 451) seguiu para avaliação plenária, tendo sido transformado em Lei Ordinária 13.438 no dia 26/4/17. Ou seja, depois de um período de quatro anos sem movimentação, em apenas um mês foi transformado em Lei nacional !!

Ao longo do tempo em que tramitou, a matéria não foi objeto de audiências públicas, e sequer de debates públicos ampliados, com participação de grupos de interesses diversos, representações plurais da sociedade civil organizada, atores-chave do SUS e outros – como caberia aos processos democráticos frente a uma temática de alcance nacional, que não é objeto de consenso entre pesquisadores e especialistas, como o

caso da aplicação de protocolos padronizados para detecção de risco psíquico em bebês.

A Lei foi assinada pelo presidente da república, pela secretária de direitos humanos e pelo ministro da justiça, sendo esta última assinatura ministerial um fato inédito na história recente do país – não há precedentes de um representante da justiça assinar uma lei cujo objeto é ligado ao campo da saúde, sem que o representante da pasta da saúde conste também como signatário.

(Des)caminhos da Lei:

O contra-senso de uma Lei „fora‟ da Lei. Ou: uma Lei para a Lei?

O SUS – este vigoroso e democrático sistema de saúde – oriundo de uma constituição cidadã e institucionalizado como Lei desde 1990, dispõe de diretrizes e bases normativas capazes de orientar a construção de caminhos para um cuidado mais efetivo às crianças, baseado na integralidade da atenção e na colaboração intersetorial. Os problemas de desassistência ainda presentes no cenário brasileiro estão mais relacionados à execução das diretrizes políticas (à gestão) e ao subfinanciamento do SUS do que à ausência de proposições ou diretrizes para ampliação do acesso e qualificação do cuidado. Já há „régua e compasso‟, mesmo que ainda não haja o traçado almejado!!

Merece destaque, no conjunto das proposições já existentes, o Marco Legal da Primeira Infância, pela abrangência e sensibilidade com que trata e propõe ações de atenção. Fruto de amplo debate e da participação de diferentes segmentos, o Marco Legal é a síntese das propostas mais progressistas e éticas para o cuidado da primeira infância. Além dele, para a atenção no caso de situações mais complexas, que requerem cuidado mais específico, o SUS dispõe de orientações e normativas na área da saúde mental e na de pessoas com deficiência (já citadas) que constituem, em cada uma das áreas específicas de atuação, mapas de navegação precisos e potentes.

Sendo assim, cabe a pergunta: se já há uma Lei, a do SUS, com densa base normativa e propositiva para o desenvolvimento de ações territoriais, intersetoriais e colaborativas de cuidado, para que outra Lei? A que serve uma Lei para a Lei?

Se há consenso sobre a necessidade de avanços na montagem das redes de cuidado e atenção, sobre a necessidade de superar o acesso tardio para os que necessitam, sobre os inúmeros problemas existentes na execução das diretrizes da saúde pública, sobre a necessidade de qualificação dos profissionais para o exercício do cuidado responsável em ações inovadoras (como o são a do trabalho colaborativo e intersetorial), por que não enfrentar estes desafios dentro do marco do SUS? O que uma Lei, baseada unicamente na obrigatoriedade de detecção precoce de risco psíquico em bebês, poderá contribuir para a superação desses desafios e garantir efetivamente processos de cuidados aos mesmos e apoio às suas famílias? Para esta última pergunta, a resposta é: certamente nada !!

O silêncio da Lei

Leis são instrumentos que pretendem regular práticas de uma sociedade, de um Estado; inclui-se nelas, portanto, a ideia de dar garantias e promover equidade para uma dada população. Mas as leis são também compostas por suas brechas, assim como, nem todos os efeitos produzidos pelas leis conseguem ser regulamentados por elas: “A lei funciona tanto pela que ela diz quanto pelo seu silêncio” (MILNER, 2006), ou seja, a lei permite tudo o que ela não interdita expressamente. O silêncio da lei é também o que a faz (des)funcionar.

Em relação à Lei que obriga pediatras a aplicarem em suas consultas médicas um protocolo ou outro instrumento para avaliar o chamado risco psíquico em bebês de 0 a 18 meses, o que está silenciado?

A ideia de que as crianças pequenas sejam alcançadas pelas políticas públicas de atenção à saúde não deve ser confundida com a suposição de que aplicar um protocolo para testar RISCO PSÍQUICO para todos os nascidos garantiria a atenção necessária para os que não vão bem nos primeiros meses de vida.

O primeiro e incontornável problema reside na padronização da detecção e, por suposto, da atenção, por todo e qualquer protocolo. Se não for suficiente considerar que Brasil é tecido por sua diversidade cultural e territorial – e não haverá qualquer instrumento padronizado para a finalidade proposta na Lei que poderá ser sensível a

essas diferenças -, será então preciso adentrar na discussão específica do que a proposição de qualquer questionamento acerca da condição psíquica de um bebê produz, na atualidade, no interior de suas famílias e sobre seus cuidadores.

A pergunta pelo risco já é, necessariamente, o „alarme da doença‟, e os efeitos iatrogênicos desse processo devem ser considerados por qualquer clínico responsável. A questão se amplia quando um país, marcado por extrema desigualdade de oportunidades, na força de uma Lei independente procura risco em sua população de bebês. Está aqui o início da problematização da utilidade da noção de risco como indicador de cuidado, e sua implicação na patologização da infância.

A proposição do SUS e sua profunda relação com os princípios da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, desde 1990, procura saídas para que, na intenção de prevenir doenças, o Estado acabe por criar condições para seu aparecimento. O primeiro e decisivo ponto para isso foi a concepção de Saúde a partir de suas condicionantes sociais. Com esse princípio, além de desarticular a ideia de saúde da prerrogativa da ausência de doença, foi possível ressignificar a ideia de prevenção.

As práticas de prevenção, a partir da instituição do SUS, estão vinculadas à concepção de que as condicionantes da saúde extrapolam os limites do corpo orgânico e se realizam na articulação do indivíduo com sua experiência no território, no contexto social onde vive. Em saúde mental, prevenção está articulada à ideia de saúde como resultante também das condições de vida (e não como antecipação de risco de doença) e, nesse sentido, sua reescrita pela noção de promoção de saúde mental tem sido a via mais promissora para construção de trajetórias efetivas na oferta de atenção.

A Lei 13.438 parece desconhecer o funcionamento do SUS, e os caminhos percorridos para chegar até aqui. Todos entendemos que é absolutamente necessário que a atenção à população de crianças de 0 a 18 meses seja garantida, pois nessa tenra idade a prática do cuidado sustenta a atenção necessária para que o que não vai bem seja efetiva e estruturalmente modificado. Porém, a aplicação de protocolos de teste de risco psíquico sobre todas as crianças nascidas, além de sustentar-se numa falsa garantia, arrisca efeitos iatrogênicos que as práticas de promoção de saúde são capazes de conter. É ainda fundamental lembrar que a ideia de saúde como condição de vida, aponta para a perspectiva de que a sua promoção, e o

engajamento da sociedade sobre essas condições1, possa realizar, de uma maneira territorializada, colaborativa e corresponsável, a sustentação ambiental necessária para o crescimento saudável das pequenas crianças e a atenção em tempo hábil, nos dispositivos de rede, para os problemas que apareçam desde o seu nascimento, sejam da ordem do corpo orgânico ou de seu psiquismo.

O risco do risco

A ideia de risco está relacionada a uma forma de prevenção cuja incidência se faz sobre o indivíduo, desconsiderando a dimensão coletiva das intervenções sobre os processos de saúde e adoecimento. É no interior dessa discussão sobre um determinado modo de prevenção que interessa examinar a noção de risco, uma vez que essa última passou a ser o grande argumento para a instituição de uma prática de rastreamento psíquico populacional.

Para Foucault, a questão do risco precisa ser tomada a partir de uma noção específica de caso, que destitui a ideia de doença enquanto uma relação que se dá entre o “doente” e o seu meio. Caso, desta maneira, aponta para um movimento de individualização do fenômeno coletivo da doença, ou da integração de fenômenos individuais no interior de um campo coletivo, apagando singularidades e instaurando processos de normalização e padronização. (FOUCAULT, 2008)

Para o autor, a noção de risco emerge ao tomar a doença (ou agravo à saúde nas leituras contemporâneas) como algo acessível no nível do grupo e no nível de cada indivíduo. Observar a distribuição (territorial, etária, étnica) dos casos permitiria, então, identificar a propósito de cada individuo ou de cada grupo individualizado qual o risco de cada um. Risco e caso, desta forma, apagariam toda e qualquer demarcação entre doentes e não-doentes, como que fazendo supor uma população sem descontinuidade, sem ruptura, que pode ser reduzida a uma curva de distribuição normal, com pouco espaço para as normalidades mais desfavoráveis e mais desviantes.

1 Lei 8080, “Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.”

Para Schlich (2004), a ideia de risco emergiu em um contexto econômico, referida ao perigo de perder dinheiro em empréstimos ou no mercado de seguros. No século XVIII, por exemplo, algumas companhias inglesas usavam tabelas de mortalidade para justificar a cobrança de valores adicionais para portadores de gota e hérnia. Foram as companhias de seguro que construíram toda uma quantificação do risco estatístico de aumento de mortalidade, associado a várias condições médicas e não médicas. Este mapeamento foi incorporado ao campo da saúde na década de 1950, considerado um marco na compreensão dos fatores de risco, naquele momento associados às doenças cardiovasculares.

O risco na saúde, entretanto, diverge do risco no campo dos seguros. Neste, riscos são pensados como gradientes, operando em diferentes níveis. No campo da saúde, por outro lado, risco tende a ser dicotômico (tem/não tem), sendo frequentemente relacionado com fatores estritamente biomédicos (ao contrário dos riscos das seguradoras, que incluem várias dimensões não médicas da vida) e, na maioria das vezes, considerados de forma isolada.

O passo mais delicado, e que talvez tenha relação direta com a grande preocupação que move os atores críticos à aplicação da Lei 13.438, é que os fatores ou indicadores de risco frequentemente vêm sendo associados, e tratados, tanto na sociedade em geral, como no campo médico, como se fossem a doença em si. Segundo Normam e Tesser (2009), a organização de modos de cuidado a partir da ideia de fatores de risco “tem levado a uma verdadeira transformação cultural nas populações. […] Transformamos os sãos em sãos preocupados e, depois, em sãos estigmatizados e em pseudo-enfermos, com o que os deixamos indefesos ante os danos desnecessários, diários e extraordinários, previsíveis e imprevisíveis” (p.2018). O prudente, segundo eles, é o empreendimento de programas que não sejam centrados nos fatores de risco e possam interferir nas condições básicas de vida das populações, respeitando suas particularidades culturais e sociais.

Para o tema suposto à Lei, o do acesso a tempo ao cuidado quando necessário, o uso de fatores de risco como guia deverá ser substituído pela construção de linhas de cuidado intersetoriais e colaborativas em cada território, baseadas no princípio da promoção de saúde/saúde mental, que tenham caráter participativo e permitam o protagonismo da comunidade local. Só assim poderá ser evitada a reprodução de processos de exclusão em um campo onde o estigma se constitui como uma das principais barreiras de acesso ao cuidado.

Um olhar para outros mundos: o debate no contexto internacional

Acreditamos que este debate pode fazer bom uso das experiências e discussões que vêm ocorrendo em outros países. Considerar outras problematizações a respeito da aplicação de rastreamento em todas as crianças em um determinado país pode apresentar parâmetros pertinentes para a reflexão acerca de uma Lei que obriga a aplicação de um protocolo a todas as crianças brasileiras.

Ainda que na maioria dos países haja uma predominância do uso de ferramentas e intervenções baseadas nas teorias comportamentalistas, o que diverge consideravelmente da realidade brasileira, e que os sistemas de saúde de cada um estejam assentados em princípios diferentes aos do SUS, a opção aqui é lançar um olhar para o posicionamento dos gestores, enquanto tomadores de decisão a partir de uma perspectiva populacional. Naturalmente há importantes diferenças nos contextos micropolíticos da clínica, porém consideramos haver convergências em termos de responsabilidade sanitária quando se trata de aplicação de testes ou protocolos em nível populacional, particularmente para a população de bebês.

Serão tomados como parâmetro três países e um continente para um breve diálogo.

No Reino Unido, dois documentos oficiais consolidam uma posição, apesar de divergências pontuais entre eles. O Grupo Coordenado de Saúde Materna, Fetal e Infantil realizou, em 2011, uma revisão da literatura cobrindo os anos de 2005-2010, seguido de uma consulta pública encerrada em 2012. O documento final do Comitê Nacional de Rastreamento toma como parâmetro o posicionamento da Sociedade Britânica de Psicologia, tecendo considerações, sobretudo, a respeito do tratamento. Há uma clara convergência entre ambos: o rastreamento em crianças abaixo de 5 anos não deve ser realizado.

Na Austrália, diferentes documentos regionais trabalham a partir de extensas revisões de literatura com sinalizações convergentes. Os estados de New South Wales e Victoria oferecem revisões relativamente recentes (novembro/2014 e outubro/2015) do estado da arte sobre rastreamento para autismo, e ambos apontam não haver evidências robustas que sustentem a oferta de rastreamento populacional para essa problemática.

O estado da arte dos rastreamentos no continente europeu foi realizado em 2014 (GARCIA-PRIMO et al, 2014), com um amplo levantamento, tanto histórico quanto metodológico, das diferentes realidades de cada país e as estratégias de aplicação.

Não há menção a algum país que pratique o rastreamento universal em toda a Europa. O estudo também aponta que há uma série de questões a serem resolvidas, em diferentes dimensões, para se considerar a viabilidade de aplicação de um programa de rastreamento de larga escala.

Ainda que a Lei brasileira não se refira ou se restrinja à questão do TEA, a problemática do autismo estará inevitavelmente relacionada aos seus desdobramentos. Nos EUA, no nível federal, a Força Tarefa de Serviços Preventivos (USPSTF) concluiu, em 2016, que as evidências atuais são insuficientes para equilibrar benefícios e prejuízos de rastrear os TEA em crianças pequenas, onde não houve por parte dos pediatras ou clínicos qualquer sinal de preocupação. Outro importante estudo de revisão norte americano (Mc PHEETERS et al, 2016) produziu uma revisão sistemática sobre o tema do rastreamento na atenção primária e encontrou um valor preditivo de 50 por cento para o M-CHAT, o que aponta para a grande fragilidade de protocolos já estabelecidos. O documento recomenda aprofundamento das pesquisas para que se possa mensurar benefícios e danos de um rastreamento populacional.

Parece-nos, desta forma, que o contexto internacional, em sua ampla gama de variabilidades sociopolíticas e realidades de sistemas de saúde, tende a convergir no sentido de não recomendar a execução de uma política de rastreamento universal para pequenos sujeitos.

Um caminho possível:

O SUS, em seu desenho universal e equânime, dispõe de políticas de Promoção de Saúde que têm por objetivo intervir sobre os condicionantes sociais de saúde, produzindo mudanças na cultura que reflitam melhor qualidade de vida para uma determinada população, compreendendo-os na configuração do laço social e na sua complexa relação com as singularidades.

Pode-se concordar que há importantes vazios assistenciais no que se refere aos cuidados oferecidos às crianças na faixa etária entre 0 e 18 meses: muitas vezes o olhar incide tão somente sobre os indicadores antropométricos visando a sobrevivência de um organismo e há grande dificuldade em constituir redes sensíveis que incluam leituras sobre as possibilidades de constituição psíquica do infans, no acompanhamento do seu desenvolvimento.

É possível pensar dois eixos de trabalho que, no campo das políticas públicas de saúde, parecem mais pertinentes. Um eixo implicaria em aproximar o trabalho com os bebês do campo da Promoção, investindo em uma cultura de cuidados ampliados e na importância das primeiras relações do bebê com seus cuidadores principais, em suas próprias culturas, e que o bebê ganhe visibilidade enquanto sujeito no espectro das políticas públicas. Essas são ações de valorização da igualdade de chances no início da vida, podendo acolher e ajudar a trabalhar as dificuldades desse momento.

O outro eixo de trabalho apontaria na direção da ampliação das ofertas e modos de atenção: a) ressignificar a acolhida e construir projetos terapêuticos singulares para os bebês em sofrimento e seus cuidadores, tecendo linhas de cuidado que operem na intersetorialidade e construam redes integradas que possibilitem percursos singulares pelos serviços; b) buscar a ampliação do acesso, comprometida com uma clínica ampliada com bebês, em que a primeira infância seja pensada a partir do reconhecimento da sua condição de sujeito, colocada em prática de maneira indissociável com uma política de educação permanente para os profissionais; c) cumprir os parâmetros populacionais de cobertura para os serviços; d) expandir os processos já constituídos de apoio matricial especializado, de fóruns intersetoriais e de outros dispositivos de colaboração intersetorial; e) enfatizar a função civilizatória da educação; f) incrementar os mecanismos de compartilhamento do cuidado no quotidiano das equipes de saúde, educação, assistência social, cultura, entre outras.

O risco é a iniquidade, o desmonte do Estado Democrático de Direito e a redução das políticas sociais

Todo argumento contrário à Lei 13.438 ganha densidade se considerado o momento político do país, onde um governo subtrai os princípios democráticos, impõe uma agenda neoliberal jamais aprovada em qualquer escrutínio popular, altera leis históricas, como a trabalhista, e reduz drasticamente investimentos em políticas sociais, com especial destaque para a de saúde e educação.

Um país ainda pleno de iniquidades, com cobertura desigual de recursos de saúde pública, cujo processo de expansão das redes de cuidado foi interrompido, com sério comprometimento da atenção básica, da saúde mental e, em especial, da saúde mental para crianças e adolescentes, além de outros desmontes, não pode correr o risco de alarmar sua população com detecções de risco psíquico em bebês, que poderão difundir posturas inadequadas e culpabilizantes, quando dirigidas especialmente aos filhos da camada mais empobrecida da população, moradores dos ainda existentes desertos sanitários, sem acesso a bens básicos e demais direitos de cidadania.

Mais do que uma lei (desnecessária), o país precisa avançar no desenvolvimento de políticas sociais que permitam reduzir a desigualdade social e garantir o acesso e o cuidado qualificado. É o SUS e as políticas sociais que necessitam ser ampliados, fortalecidos, consolidados.

A hora é de radicalizar o SUS, a atenção psicossocial para crianças e adolescentes, e o sistema de garantia de direitos.

A hora é de lutar, ampla e decididamente, contra os descaminhos da lei 13.438 !!! O risco a superar é o da ausência de democracia e de responsabilidade social. O risco é a ausência de SUS.

Referências:
Foucault, M. (2008) – Segurança, território, população: curso dado no Collège de France

(1977-1978). São Paulo (SP): Martins Fontes.

García-Primo, P., et al – Screening for autism spectrum disorders: state of the art in Europe. Eur Child Adolesc Psychiatry (2014) 23: 1005. https://doi.org/10.1007/s00787-014- 0555-6

Mc Pheeters, ML et al (2015) – Screening for Autism Spectrum Disorder in Young Children: a systematic evidence review for US. Preventive Services task Force – Agency for healthcare research and quality, Vanderbilt Evidence-based Practice Center.

Milner, JC (2006) – Você quer mesmo ser avaliado? Entrevistas sobre uma máquina de impostura. São Paulo (SP): Ed. Manole

Normam, AH & Tesser, CD (2009) – Prevenção Quaternária na atenção primária à saúde: uma necessidade do sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, 25 (9): 2012- 2010

Schlich, T. (2004) – Objectifying uncertainty: history of risk concepts in medicine, Topoi, 23: 211-19

Assinam:

Claudia Mascarenhas – Espaço Moebius/Instituto Viva Infância

Ilana Katz – LATESFIP/USP
Luciana Togni de Lima e Silva Surjus – DPPSC/UNIFESP

Maria Cristina Ventura Couto – NUPPSAM/IPUB/UFRJ
Ricardo Lugon – Faculdade IENH e CAPSi Novo Hamburgo/RS

Este texto poderá receber a assinatura de todos os que concordarem com seus argumentos e propostas.

alerta.lei.13438@gmail.com

Agosto de 2017.