“A subversão do sujeito como gesto político” – Por Tania Rivera

“A subversão do sujeito como gesto político” – Por Tania Rivera

Poderia a psicanálise nos ajudar a pensar (e propor, em uma reflexão ativa) uma formação coletiva oposta àquela da massa?

… já lhe disse que dentro da massa existe o homem
e o homem é mais difícil de dominar que a massa.
(Glauber Rocha em Terra em transe)

 

O papel dos psicanalistas nos embates sociais brasileiros parece ter sido tímido nos noventa anos que nos separam do estabelecimento da primeira escola de psicanálise no país. O histórico da atuação de instituições psicanalíticas brasileira chega a ser constrangedor, quando lembramos do episódio – isolado, mas talvez exemplar – da denúncia feita pela psicanalista Helena Besserman Viana de que um dos analistas em formação pela Sociedade Brasileira de Psicanálise, Amílcar Lobo, participava como médico de sessões de tortura no DOPS durante a ditadura militar. A instituição tentou ignorar e silenciar tal denúncia, como sabemos, mesmo no cenário de “abertura democrática” na qual se urdia a inacreditável anistia para “ambos os lados”, no início dos anos 1980.

Mas podemos supor a existência de outras iniciativas comparáveis, em sua dimensão ética, à heróica denúncia de Helena Besserman Viana. Elas teriam sido silenciadas pela História (que, como bem sabemos, costuma ser contada pelos vencedores, não pelos “vencidos”) e pela dificuldade do campo psicanalítico no Brasil em recolher e construir sua histórias, para além de querelas entre grupos. Talvez a criação e sustentação de clínicas sociais – como aquela criada por Hélio Pellegrino e Kattrin Kemper em 1973 – mereça ser citada, na medida em que abriu brechas em uma prática clínica de feição inegavelmente elitista e urbana, além de geralmente rígida quanto ao modelo do “consultório particular”. Felizmente, podemos também salientar a dimensão política da atuação de psicanalistas na luta antimanicomial, desde o final dos anos 1980, e na sustentação (sempre precária e desafiadora) de lugares de escuta psicanalítica em modelos institucionais nos quais a clínica se amplia, em especial na rede pública de saúde mental. Podemos, ainda, lembrar iniciativas mais individualizadas, como o trabalho clínico de Maria Rita Kehl na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, entendido por ela como militância, ao lado de sua atuação na mídia durante muitos anos (infelizmente silenciada em 2010 pelas forças às quais interessa a ideia de que há votos (“esclarecidos”) que valem mais do que outros (entenda-se: aqueles dos pobres)).

Buscando retomar alguns fios dessa nossa história tão esgarçada, e assim assumir nela a tarefa de ecoar a potência das vozes dissonantes, quero me debruçar brevemente sobre um texto que Hélio Pellegrino publicou em 1983 na Folha de São Paulo, “Pacto edípico e pacto social: da gramática do desejo à sem-vergonhice brasílica”, retomando o trabalho apresentado anos antes em um congresso no Chilei. A intensa atuação política de Pellegrino no cenário nacional é bem conhecida e vai bem além do posicionamento a respeito da denúncia de Amílcar Lobo de que falávamos há pouco, que lhe valeu a expulsão da Sociedade Psicanalítica Brasileira. A tese apresentada publicamente no texto de 1983 dá testemunho de uma rara articulação entre vigor teórico e engajamento político – e nos lança a questão de qual seria o gesto comparável, hoje, por parte um psicanalista.

Em plena construção do “retorno à normalidade democrática” e do Partido dos Trabalhadores do qual foi um dos fundadores, Pellegrino retoma a teorização do complexo de Édipo para ressaltar que se a Lei deve ser temida para ser respeitada, uma lei que se imponha apenas pelo temor seria perversa e espúria. A lei deve ser tomada como produto de Eros: “à Lei do desejo”, que é o complexo de Édipo, “pode – e deve – corresponder um desejo da Lei”, diz ele. O temor deve estar subordinado ao amor, e “a solução do complexo de Édipo implica um pacto – uma aliança – com o pai e com a função paterna”.

Através deste pacto o sujeito assume uma importante renúncia pulsional, mas em troca ganha o acesso ao simbólico. Pellegrino ressalta que o Édipo implica, assim, uma via de mão dupla, nele “ganham os dois lados”: o sujeito e a cultura. E propõe que na idade adulta o pacto social se reestrutura em torno do trabalho, por meio do qual nos tornamos “sócios plenos da sociedade humana”. Tal pacto não pode, portanto, deixar de criar direitos inalienáveis para o trabalhador: “se o pacto social tem mão única, se os direitos do trabalho são desrespeitados, ele pode romper-se, implicando essa ruptura gravíssimas consequências”.

A consequência mais grave detectada pelo psicanalista naquele momento seria a violência urbana que ele caracteriza como “uma guerra civil crônica” mantida “pelo capitalismo selvagem brasileiro, pela cupidez e brutal egoísmo das classes dominantes”, às custas da “miséria do povo”.

A análise de Pellegrino permanece atual, sem dúvida, salvo talvez em um ponto: a força do significante “trabalhador” como palavra capaz de nomear o sujeito à altura de sua tarefa histórica (na luta que impulsionava naquele momento o Partido dos Trabalhadores, é claro). O psicanalista não chega, neste texto, a vincular explicitamente a retomada do pacto social através do trabalho ao assassinato do pai da horda primitiva proposto por Freud em Totem e Tabu como crime fundante da fratria, a sociedade na qual todos renunciam a tentar ocupar a posição abusiva do pai perverso. O termo “trabalhadores” vem, contudo, ocupar claramente o papel de significante estruturador na formação de uma sociedade baseada na igualdade entre os “sócios” – e enxertá-lo na teoria psicanalítica naquele momento histórico do país consistia sem dúvida em um gesto político de peso, por parte de um psicanalista.

Hoje, o termo “trabalhador” parece ter perdido sua potência performática de congregação das parcelas da sociedade que se posicionam à esquerda, e isso se deve certamente a fatores mais amplos do que o desgaste dos termos marxistas ao longo da História ou àquele, mais particularmente, sofrido pelo PT nos últimos anos. A própria noção de trabalho encontra-se em franca transformação no capitalismo tardio e parece distanciar-se do paradigma do operário, como apontam autores como Mauricio Lazzarato e Antonio Negri, entre outros.ii

Isso estaria em medida de tornar inválida a proposta de Pellegrino de considerar o trabalho como campo privilegiado de reafirmação do pacto social? Creio que não inteiramente. Mas o fato de ter-se esgarçado o campo de significantes com o poder performativo de nos congregar em um ato político de resistência e subversão das forças de alienação e dominação é sem dúvida sintomático, e merece reflexão ativa (ou seja, ativista: que se assuma como gesto político).

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A proposta teórico-política de Pellegrino parece propor o termo “trabalho” como contraponto àquele de “massa” adotado por Freud em seu conhecido texto de 1921, “Psicologia da Massa e Análise do Eu”. Como sabemos, para Freud a massa é sempre burra. Para o bem ou para o mal. Um agrupamento de homens em massa coesa é capaz tanto das maiores realizações quanto das piores atrocidades. Essa é a história da civilização: homens se juntam em torno de um líder que substitui o pai amado pela criança. Graças a sua relação singular com o pai, que ele supõe amá-lo, cada um desses indivíduos se identifica com os outros componentes deste conjunto, que assim se torna uma vasta família de “irmãos”. O líder sustenta um ideal partilhado pelos componentes da massa: justiça, liberdade, superioridade, igualdade, patriotismo etc. A partir dessa caracterização que se vê claramente na religião ou no exército, a estrutura se repete nas mais variadas incidências históricas: a massa se opõe àqueles que dela não fazem parte, e eventualmente chega a eleger um grupo como inimigo dileto. Nos casos mais radicais e deploráveis, pode acreditar ser necessário eliminá-lo.

A lógica da massa é a do contágio. Tanto para o bem, quanto para o mal. A empolgação toma a todos e pode fazê-los parar de pensar para simplesmente agir junto – é nesse sentido que Freud afirma que o fenômeno da massa pode suspender os recalcamentos, as inibições e a capacidade de julgar de cada um de seus membros. As palavras de ordem mais pacíficas e ordeiras podem por vezes degringolar em violência e abuso, a partir do momento em que se apresenta um “inimigo” em potencial ou alguma voz dissonante. Nos fenômenos de massa pode assim tomar a dianteira a máxima de Hobbes, retomada por Freud, de que o homem é o lobo do homem.

Já no pacto social estruturado em torno do trabalho, na proposta de Pellegrino, teríamos uma potência de (re)formação social igualitária e justa. O “trabalhador” seria uma potência de emancipação, mas que descambaria sintomaticamente na violência urbana, diante da opressão das elites. O psicanalista deixa em aberto a discussão teórica de como tal potência poderia, ao contrário, formar um “nós” – e de qual seria sua relação com a noção freudiana de massa.

Tentando seguir levar adiante o fio estendido por Pellegrino, podemos considerar que além de caracterizar acontecimentos pontuais como a de um linchamento público, por exemplo, ou situações muito mais complexas como o antisemitismo e as manipulações propagandísticas tão assustadoramente eficazes do III Reich, o esquema conceitual da massa é aquele que estaria na base, de forma geral, de toda estrutura de privilégio e opressão social. Ele constrói um “nós” que “naturalmente” deteria privilégios, naturalizando a pobreza e fechando os olhos para a desigualdade estrutural de uma sociedade como a brasileira através de discursos hipócritas como aquele da meritocracia, por exemplo. Freud não chega a apontar isso que me parece fundamental nessa estrutura, e que suas elaborações permitem que avancemos: a ideia segundo a qual há, em uma dada sociedade, uma estratificação de “nós” assim formados em diferentes direções identificatórias, e esses grupos (correspondam eles ou não à clássica definição marxista de classe social) se distinguem e opõem segundo condições variadas que tendem a gerar situações sociais de segregação, abuso e recusa de direitos.

Mas podemos ir mais fundo nesta ideia e supor que a sociedade não simplesmente seja constituída por formações de massa distintas a se oporem em dinâmicas complexas, mas que eventualmente os significantes que permitiriam a incidência do pacto social em determinado contexto estejam ausentes, ou melhor, estejam recalcados socialmente (e sejam vigorosamente mantidos recalcados pelo discurso da mídia e de outros dispositivos de poder). Isso teria por consequência a impossibilidade de que se formem certas massas em torno de significantes que sejam coerentes com sua situação social e histórica, e que pessoas reforcem a alienação de sua construção egóica pelo pertencimento imaginário a um agrupamento opressor e excludente. Isso explica em parte, talvez, a adesão de parcelas excluídas da população ao discurso, e por vezes ao voto, de representantes de seus opressores históricos – ao lado da parca educação política e do embaralhamento das palavras de ordem dos partidos e dos políticos que costuma servir a fins espúrios.

A ação política parece-me portanto passar, hoje, pela busca de significantes capazes de reconfigurar o pacto social em direções plurais, suspendendo tais recalcamentos atávicos na sociedade brasileira. A revindicação atual de “lugar de fala”, pela afirmação de raça e de gênero, parece-me ir neste sentido e deve, portanto ser comemorada. Mas seria incontornável termos significantes identitários a guiar as incidências do “pacto social” – implicando, portanto, a construção de um “nós” inevitavelmente excludente dos “outros”?

A questão deve ser recolocada: toda tentativa de emancipação estaria, como ato político, fadada a se fazer de modo identitário conforme a massa? Aqui a compreensão psicanalítica da massa traz uma contribuição de peso, ao mostrar que à coletividade não se opõe o indivíduo, mas, pelo contrário, a ideia de in-divisão e autonomia do Eu é complementar à formação da massa coesa. O acoplamento freudiano entre a “psicologia das massas” e a “análise do eu”, no título do livro de 1921, já apontava o quanto a própria noção de “Eu” está articulada àquela do pertencimento acrítico à massa. Para se pensar na possibilidade de subversão da lógica da massa é necessária uma outra categoria, aquela, justamente, de que trata a psicanálise: o sujeito dividido, descentrado. O sujeito que se contrapõe ao Eu, cuja alienação fundamental será sublinhada por Jacques Lacan, e que implica uma certa subversão – e devemos aqui notar que a expressão lacaniana não deixava de ter ressonâncias políticas de peso, no contexto europeu da guerra fria. O sujeito – não idêntico a si mesmo, diferença em si. Singularidade não identitária.

O sujeito segundo a psicanálise é aquele que “não é senhor em sua própria casa”, no célebre bordão freudiano, e portanto implica, justamente, um movimento de reviramento das construções imaginárias que o estabilizam e aprisionam em formações identitárias que lhe oferecem o pertencimento a uma “casa” que corresponderia a uma dada situação social, em compartilhamento com seus “semelhantes”. Isso não significa, porém, que ele esteja condenado a ser aparição efêmera e disruptiva apenas no âmbito íntimo e privado (capaz de se dar, por conseguinte, especialmente na situação clínica clássica (e protegida) do consultório de psicanálise).

Esta é, a bem dizer, uma questão central para a psicanálise, e no entanto pouco explorada: a potência de subversão do sujeito poderia ser transmitida, no âmbito social? Poderia ser de algum modo compartilhada, como uma centelha de ligação entre nós?

Ou, ainda: poderia a afirmação da diferença – da singularidade – agir na contracorrente da alienação identitária da massa como reafirmação do pacto social em outras bases? Seria possível, com a psicanálise, buscar por esta via um outro modo de construção do “coletivo”?

A minha aposta seria a de acreditar que este modo está em ação no social, sob modalidades menos facilmente identificáveis do que as espetaculares afirmações identitárias e alienantes da massa. Este modo implica a construção de um entre pessoas por via de dissonâncias e dissidências, e age a favor do fluxo de movimento e do surgimento pontual, em vez da fixidez imaginária da massa. Ele repele, talvez, a adoção de um significante central – mas isso não deve ser lamentado como um declínio da função paterna ou um fracasso do registro simbólico. Porque ele não cessa de pôr em movimento a cadeia significante, recusando sua cristalização imaginária em palavras de ordem.

Eu o vejo acontecer na experiência artística, quando ela consegue acender sua centelha política (e é isso que faz do campo da arte, em minha opinião, um campo fértil para o pensamento contemporâneo em geral – e psicanalítico em particular). Mas desconfio que ele esteja à por aí, disseminado, à nossa espreita, nas ruas e nos espaços privados – ele que é íntimo e ao mesmo tempo está fora, no outro, no campo social, êxtimo como queria Lacan.

Mas talvez nos faltem olhos para vê-lo acontecer.


i Acessível em http://freudexplicablog.blogspot.com.br/2010/08/pacto-edipico-e-pacto-social-da.html, por exemplo. Esse texto será em breve publicado na coletânea Ensaios Contemporâneos Brasileiros – Psicanálise, editado pela Funarte e organizado por mim em colaboração com Edson André Luiz de Sousa e Luiz Augusto M. Celes.
ii Ver Lazzarato, M. e Negri, A. Trabalho Imaterial. Formas de Vida e Produção de Subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. Disponível em https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2017/03/lazzarato-e-negri-trabalho-imaterial.pdf.