Psicanalistas, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros, médicos e demais profissionais ligados à saúde mental: o que podemos esperar com relação ao cenário que se desponta com a chegada dos governos municipais na virada do futuro ano de 2017? A resposta é simples: governos engendram políticas públicas de saúde e de saúde mental que marcam a situação e trazem os destinos em que estamos e iremos nos inserir como profissionais em nossas práticas públicas e privadas.
A cena é conhecida entre os aficionados pela trilogia de Back to the Future (De volta para o futuro, direção de Robert Zemeckis). No segundo filme, o doutor Brown volta do futuro com seu DeLorean DMC-12, uma máquina do tempo, para alertar Marty que seu futuro corre perigo. Seu filho está na cadeia, o vilão Biff se tornou mais poderoso e rico do que nunca graças às apostas esportivas alcançadas pela posse de um almanaque – um vacilo de Dr. Brown em uma de suas viagens pelos tempos. O período futurístico ao qual o filme faz referência é, justamente, outubro de 2015. O plano seria dar um jeito no futuro e permitir que houvesse um novo presente e, então, um futuro diferente da tragédia anunciada em meio a essas viagens temporais.
A proposta deste texto será tecer alguns comentários sobre o que os últimos acontecimentos guardam para o futuro da saúde mental no país. Por mais anacrônico que possa parecer, a tradução do título original do filme é condizente com o que almejamos abordar neste texto. É tempo de voltarmos nossa reflexão para o futuro, de modo que possamos fazer frente ao que, do passado, temos experiência para confrontar o que se anuncia no presente. Vale dizer que o cenário trágico, como farsa ou não, parece repetir o conhecido passado da saúde mental: o encarceramento e o forçamento de inclusão de todos aqueles considerados à margem da “normalidade”.
É no âmbito do direcionamento clínico e do posicionamento ético que políticas são formuladas, implantadas, implementadas e avaliadas. Estas, por sua vez, relacionam-se com formas de apreensão do sofrimento psíquico, influenciando a maneira como profissionais apreendem e atuam no campo da saúde mental no país. Mas é especialmente no setor público que podemos dirigir nossas preocupações como profissionais da saúde. Isso porque, na particularidade de nossas clínicas, talvez se reserve maior autonomia para se pensar e atuar em termos da direção de tratamento, da reflexão sobre diagnósticos e propostas de caminhos que têm como norte certo ideário de cura, alívio do sofrimento ou prognóstico, conforme terminologias que melhor coadunem com nossos múltiplos pressupostos clínicos, éticos e políticos.
No entanto, é no setor público que a saúde pode despontar riscos a essa multiplicidade de vertentes da clínica em saúde mental. Não que o setor privado não receba influências ao que se possa propor em termos macropolíticos, pois sabemos como políticas federais, estaduais e municipais engendram conflitos quando colocados sobre diferentes embasamentos e direcionamentos políticos – por meio de projetos, programas e leis –, mas é sobre o setor público que os rumos da saúde mental, como parte da “coisa pública” que envolve as políticas públicas de saúde, aponta possíveis entraves a um futuro próximo.
Refiro como “entraves” já que o cenário que se desponta pode ser considerado problemático, levando-se em conta pesquisas e experiências nacionais e internacionais sobre nossas práticas profissionais. Sabemos que esses entraves não se restringem aos excessos do Mercado, mas também, ao outro lado dessa moeda, do Estado, ambos como potencialmente totalitários. Nesse sentido, é no esteio da socialdemocracia, a exemplo dos países nórdicos, que pretendo situar como um locus de boas práticas em saúde mental. Por “boas práticas” refiro o jargão comumente de direita, sobre os critérios de eficácia e eficiência em saúde pública e coletiva. Assim como “boas práticas” que, conforme apropriação da esquerda, a efetividade condiz com o termo que melhor se aproximaria da concepção de “satisfação”, tanto em termos da singularidade subjetiva quanto da satisfação pública, condizente ao ideário do bem-estar para todos.
Pois é. Àqueles que acreditam, porventura, que os EUA e seu american way of life corresponde os melhores resultados nessa seara, um aviso: enganam-se. Os EUA se encontram como o país onde mais se encarecera e se medica o sofrimento psíquico. Para aquele que se encontra fora dos standards nacionais, ou seja, de pessoas que insistem em não se enquadrar no american way de chegar à felicidade – aventada em sua própria Constituição – a resposta costuma ser a do silenciamento, a força. A título de exemplos, sem pretendermos abarcar todas as áreas onde a saúde mental está presente, convido leitores e leitoras a acessarem:
⇒ “Sicko”, um documentário de Michael Moore sobre o sistema de saúde norte-americano.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VoBleMNAwUg
⇒ “População prisional americana: a maior do mundo”, quanto ao sistema carcerário, também nos EUA.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uEKy2L9BEI0
⇒ “Cymbalta Commercial”: sobre as propagandas abertas sobre medicamentos psicotrópicos, sem deixar de apresentar a série de seus efeitos adversos.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OTZvnAF7UsA
⇒ “Penitenciárias privadas: quanto mais presos, maior o lucro”: sobre a chegada das privatizações no sistema carcerário nacional (conforme exemplo norte-americano).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xmae89KBuiY
⇒ “Open Dialogue”, da Finlândia, sobre o programa que apresenta os melhores resultados no tratamento de psicoses.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HDVhZHJagfQ
⇒ “Quebrando o Tabu”: sobre o uso abusivo de álcool e outras drogas e o malogro histórico das políticas proibicionistas
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tKxk61ycAvs
⇒ “Crack, repensar”, especificamente, sobre o uso de crack no Brasil.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K-TFGOdW8RE
⇒ “Crack, é possível entender”, com o neurocientista americano, Carl Hart.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zTX7880gpZ4
⇒ Quanto aos manicômios, há uma série de produções textuais e vídeos, como o clássico: “Bicho de Sete Cabeças”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=u24WcelAjww
⇒ E o documentário “Intervenção na Casa de Saúde Anchieta”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7J192djiUvg
As políticas públicas de saúde mental dos países nórdicos e de alguns países europeus, como a da França, assim como políticas que enfocam a perspectiva da Redução de Danos, como as de Portugal e da Holanda, no tratamento ao uso abusivo de drogas, despontam-se como as que apresentam os melhores resultados do mundo em termos de eficácia, eficiência e efetividade. Essa perspectiva clínica condiz com políticas que enfocam meios prioritariamente abertos de tratamento ou internações breves; inserção comunitária; baixo uso de medicamentos psicotrópicos; participação de usuários de serviços, servidores, familiares e da comunidade no que tange à elaboração de projetos terapêuticos; inter ou transdisciplinaridade; emprego de estratégias de cuidado horizontalizadas e fomento à empregabilidade, inserção social e criação de projetos de vida.
No Brasil, a perspectiva quanto à saúde mental traz um cenário desalentador. A chegada do novo governo paulista ameaça nossa saúde: no trânsito e nas ruas (com o aumento da velocidade de automóveis e a privatização de setores urbanísticos); nas escolas e universidades (a reorganização e o fechamento de escolas estaduais, a tendência à privatização do ensino universitário e propostas do governo federal de exclusão de disciplinas no ensino médio, como: filosofia, sociologia, artes e educação física); na saúde pública (retrocessos no âmbito do SUS, colocando em xeque os pilares constitucionais de sua sustentação, isto é, a universalidade, a integralidade e a equidade e a pressão de planos privados de saúde, empresas e grupos hospitalares no empuxo à derrocada do sistema).
E, especificamente, na saúde mental: fortalecimento de uma bancada religiosa cujos projetos conhecemos: “Cura Gay”, internações compulsórias, vertentes teórico-práticas que se pretendem hegemônicas no âmbito do cuidado, Comunidades Terapêuticas que enfatizam processos de conversão em detrimento da singularidade subjetiva e instituições que insistem em recorrer a práticas de tortura, afora o desprezo de pesquisas e experiência nacionais e internacionais que revelam dados sobre a eficácia, eficiência e efetividade de modelos de tratamento abertos, com baixa incidência do uso de psicotrópicos e internações.
Para finalizar, gostaria de chamar atenção a um específico programa criado pela prefeitura paulista, o De Braços Abertos (DBA), que o futuro novo prefeito já adiantou, terá seu fim. Um dado importante àqueles que não conhecem o programa: seu nome foi pensado coletivamente pelos próprios usuários do serviço. As barracas que antes dominavam a rua Helvétia e imediações foram retiradas pelos próprios moradores. Contrariamente ao que boa parte da mídia aventou, o programa recebeu a maior adesão em termos de tratamento ao uso de crack e outras drogas na história da cidade, com redução no consumo de pedras por dia, fomento à empregabilidade, inserção social e moradia.
A exemplo de experiências internacionais em estratégias redutoras de danos, o DBA da prefeitura apresenta-se como proposta mais eficaz, eficiente e efetiva que o programa Recomeço do governo do Estado, que enfoca internações e repasses de verbas às famigeradas Comunidades Terapêuticas (que adotam a perspectiva da abstinência e, em sua maioria, apresentam cunho religioso). Para abordarmos o problema das drogas e da saúde mental como um todo, é preciso termos claro que se trata de um problema transversal, que não se reduz a um problema individual. A saúde mental, como sabemos desde o início de nossa formação na área da saúde, é uma área que envolve outros setores, como: habitação, relações sociais, educação, cultura, esportes, emprego, saneamento, entre outros.
Findar o programa será um grave retrocesso e apenas pretenderá tirar das vistas da população um problema que traz um lado que pretendemos a todo custo recalcar: a pobreza, a sujeira, o fedor e a feiura. São os elementos desta nossa “miséria” humana que se quer sobrepujar quando se fala de encarcerar as mais diversas formas de loucura. O manicômio vive e sabemos que a Reforma Psiquiátrica, cuja lei de saúde mental é a que vigora aos profissionais dedicados à saúde mental no país, depende de uma constante desconstrução dos aparatos manicomiais, dos discursos que visam a todo custo controlar comportamentos e segregar. A tendência, meus caros, é a da prevalência de uma postura retrógrada na saúde mental. Caberá a nós, trabalhadores e trabalhadoras dos serviços públicos de saúde, fazer valer uma postura que vá à contramão dessas correntes.
As correntes despontam no futuro próximo ou elas voltaram. Voltarão talvez sob novas roupagens, com discursos mais cientificizados, de acordo com os novos tempos. Mas não nos enganemos, é o mais novo do velho já conhecido. Será um momento oportuno para novamente exorcizar os “anormais”, os “transtornados” e todas as formas de diseases mentais. Haverá um tempo quando, ainda assim otimistas, como em Back to the future III, possamos querer ter ficado no passado.
Adriana Marino