APRESENTAÇÃO | Abril despedaçado: psicanalistas pela democracia
Paulo Endo
No dia 7 de abril de 2016, mais de 50 anos após o golpe civil-militar e mal chegados os 30 anos de democracia no Brasil, realizou-se no Instituto de Psicologia da USP o ATO: Psicanalistas pelo apoio incondicional à democracia no Brasil. Dez dias depois ocorreria a votação do impeachment da presidente Dilma Roussef na Câmara dos deputados em Brasília, que aprovara a continuidade do processo.
Mais de 300 psicanalistas, alunos e simpatizantes compareceram ao ATO e outros milhares assistiram pela internet e, depois, no portal http://www.psicanalisedemocracia.com.br, que foi criado especialmente para a divulgação do vídeo, apoios, manifestações e artigos que respondessem à convocação da chamada. Ao mesmo tempo, novos ATOs, manifestações e petições, organizados por outros psicanalistas, ocorriam em outros estados do país.
Essa congregação de psicanalistas, advindos de diversas universidades brasileiras, de diferentes grupos, associações e sociedades de psicanálise, de dentro e de fora do país, inscreveu, por sua força e propósito, uma marca no campo mesmo onde se exerce, se pesquisa e se estuda a psicanálise no Brasil.
A palavra ouvida, proferida, remetida nesse ATO era endereçada aos psicanalistas, às respectivas instituições onde se formam e estudam os psicanalistas e aos cidadãos de um país que atravessa uma das crises mais importantes de sua história. Era também endereçada aos alunos, pesquisadores e também aos analisandos(tes), simpatizandos(tes) e interessados na psicanálise.
Como ATO, revelou um princípio, gênese e manifestação de psicanalistas que foram, coletivamente, para a cena pública, pela primeira vez em nosso país, reconhecer um processo em curso que prevê a derrota da democracia recém conquistada no Brasil; o desmonte de suas esquelética institucionalidade e o protagonismo de classes sociais que odeiam a democracia e a liberdade que ela promete e enseja.
A hiperconcentração de recursos, privilégios, aspirações, sonhos nas mãos de poucos, ofende a todos e agride os princípios que regem a clinica e o pensamento psicanalíticos. Seus efeitos mais óbvios para a psicanálise incluem o acesso privatista e restrito ao tratamento psicanalítico, mas também o ataque e tentativas de ridicularização da psicanálise e dos psicanalistas quando pensam, escrevem, agem para constranger as bravatas e palavras de ordem; propõem debates e questões para além e aquém do visto, do dito e do verdadeiro; quando demonstram a insuficiência do aparente e do manifesto dos discursos aspirantes à verdade incontestável.
Os efeitos da negação de conquistas sociais e políticas no presente querem determinar, mais uma vez, que alguns são sujeitos e outros são assujeitados; que alguns são dignos de escuta e outros são calados; que alguns são intérpretes e outros são categorias; que alguns vivem histórias arquiváveis, outros, histórias calcináveis.
Somos todos testemunhas dos achaques ininterruptos e seculares cometidos contra a democracia no Brasil. Ataques que incidem sobre o corpo do não cidadão, aquele que é calado, submetido e eliminado, mas seu objeto é o espírito, a devastação psíquica para que não haja marcas, traços ou vestígios após a passagem da força bruta. Todos vimos e vemos violências serem cometidas e narrativas serem ratificadas, como efeitos de verdades incontestes; e todos fomos alvos de tentativas de agenciamentos para dar seguimento à hegemonia dos discursos, práticas jurídicas, midiáticas e empresariais que sempre estiveram no comando para reservar os profusos recursos do país a muito poucos.
Hoje parte significativa dos proprietários das grandes empresas-mídias, indústrias e parte dos operadores do direito é ocupada e comandada pelas mesmas elites que dominam o país há séculos. Os 30 anos de democracia não foram suficientes para mudar isso consistente e significativamente.
Para muitos desses psicanalistas que compareceram, apoiaram e se manifestaram nesse dia, a democracia no país está ameaçada; e, para eles, diante de tal ameaça, é da palavra singular proferida como reconhecimento do sujeito público que se carece. Daí o sentido do ATO que se consagra como experiência de fala pública e coletiva, que funda a linguagem e interpreta suas repetições, ecolalias, clichês e imperativos.
ATO que convoca todas as outras falas singulares, para que se constitua o pluralismo contra a hegemonia, e apela à singularidade como esteio da experiência pública. Um ATO requisita uma fala de origem, inédita e inaugural e se apresenta como interpretação quando a hegemonia discursiva se sobressai. Um ATO gera a interpretação e denuncia as falas impositivas, supostamente abrigadas no consenso e que, cínica e duradouramente, amparam a destruição de tudo o que não se submete a esse pretenso consenso.
Essa palavra positivada e positivista rejeita a palavra não que castra a palavra portadora da verdade, interpreta os princípios que regem a palavra de ordem e suscita o frescor do pensamento quando a ordem é não mais pensar. I would prefer not to, relebrando Bartleby.
Um ATO perfura os simulacros das palavras perfeitas, sem excluir os riscos do próprio discurso psicanalítico quando se exibe aquém ou além das tramas discursivas e institucionais que o definem; e, ao fazê-lo, evidencia que o rei está nu, e os juízes estão sem toga. Abre-se então, por um momento, o debate para desnudar verdades que tem no ordenamento jurídico sua última instância. Romper com o palavrório eloquente de toga, mas também com tagarelices, fofocas e desmentidos que fazem da interrupção de um mandato presidencial, referendado por milhões, uma partida de futebol nefasta que pretende se esgotar nela mesma. Torcedores, humilhadores e humilhados rumam para casa após a catarse catastrófica esperando a próxima partida.
Não será do ordenamento e muito menos de sentenças em tribunais que virão verdades absolutas — impossíveis por princípio —, mas sua presunção de verdade é o que hoje depõe governos legitimamente eleitos, superlota a cadeia de pessoas pobres, desconhece e não sentencia a tortura como crime no Brasil e preserva a impunidade das elites nacionais às quais se dobram.
É a inversão e a subversão de poderes e hegemonias que hoje, mais uma vez, se quer solapar e são essas vozes que se pretende calar. É à palavra que rompe, inédita e plural, para denunciar o paradoxo do direito sem justiça que a psicanálise pode e deve apontar, juntamente com os milhares de movimentos, coletivos e grupos que ocupam as ruas, as escolas, as reitorias, as fundações e as assembleias para falar contra elas, sobre elas, para além delas. Para proferir o ‘não’ que inaugura a linguagem e instaura a ética da alteridade.
Todos, os que se deslocaram para o ATO no dia 7 de abril sabiam que seria a primeira vez que psicanalistas brasileiros se reuniam, às centenas, para defender uma e única coisa: a democracia no Brasil.
O que provocou esse sentido de urgência foi a clareza sobre os processos escusos, inconscientes e latentes que são agenciados por intenções deliberadas e projetos de poder explícitos, sobre o qual a psicanálise e os psicanalistas têm muito a dizer. Mas foi também um outro sentido, configurado pela linha de continuidade que precisa ao mesmo tempo prosseguir e romper com o episódio Amílcar Lobo, que vêm à público a partir da enunciação corajosa de Helena Besserman Viana e outros que a apoiaram e a seguiram. Esse episódio tornou-se assunto de aulas, conferências, encontros, artigos e livros, ao mesmo tempo em que, por vezes, serviu, para alguns, como álibi para não reinterpretar e agir sobre o tempo presente em função da mea culpa sobre o passado.
Não somos apenas os eventuais herdeiros dos psicanalistas do passado, somos também aqueles que interpretam essa tradição e decidem sobre sua transmissão.
No princípio foi, e sempre será, o ATO; frase que finaliza o texto Totem e Tabu de Freud e instaura sua condição de gênese. Nesse que é o país onde a psicanálise frutificou de maneira extraordinária, que seja possível imaginar uma fratria constituída por irmãos capazes de acusar a autoria das coisas que eles mesmos matam e fazem nascer, como poetas épicos — fundadores, contestadores, atores e críticos das tiranias modernas —, e não mais precisem (e queiram) se escorar no pretenso anonimato da horda muda, submissa e cativa falada por outros que melhor saberão sobre ela.