Começo essa escrita convidando você, caro/a leitor/a, a construir uma imagem mental que Gabriel vai lhe contar. “Pense que está sobrevoando uma mata fechada e, de repente, se depara com uma clareira nítida, com uma grama rasa e devastada. A clareira é um grande círculo nessa mata de árvores verdes e pulsantes. Você tem a tarefa de ligar as árvores nessa clareira com uma corda, mas percebe que a clareira é grande demais e a corda não alcança. É preciso plantar árvores em alguns pontos da clareira. Com o passar do tempo, algumas árvores vão surgindo, ainda esparsas, mas suficiente para o alcance das cordas. Você lembra também que essas árvores são pulsantes, vivas e precisam de um certo cuidado para serem manuseadas. Para cumprir a tarefa de ligá-las, é preciso, primeiramente, descer do sobrevoo e adentrar a clareira, além de pensar em como articular essa corda. As cordas são feitas de um material simples, de fibras torcidas, que produzem atrito ao enlaçar-se em si mesma. Você percebe que é possível produzir um tipo de laço por fricção, em que a corda, encostando nela mesma, produz a fricção necessária para não desprender-se caso tensionada, firmando o laço e, ao mesmo tempo, preservando a pulsação da árvore. O laço é feito pelo cuidado e atenção do laçador, buscando cumprir a função de ligar, segurar, e ao mesmo tempo, não pressionar demasiadamente”
As palavras acima são de Gabriel Rovadoschi Barros. Ele compartilhou essa imagem a primeira vez em reunião com o Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (@cltvpsm), em agosto de 2022. Gabriel é psicólogo, mestre e doutorando em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM), sobrevivente da boate Kiss e presidente Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia em Santa Maria (@avtsm27). Para ele, essa imagem insiste e resiste em seus pensamentos: “Representa a dimensão da devastação coletiva causada pela tragédia na cidade de Santa Maria, gerando uma espécie de tabu sobre o assunto “Kiss”, em que se faz necessário um intenso trabalho repleto de cuidado.”
O incêndio na boate Kiss interrompeu brutalmente a vida de duzentos e quarenta e dois jovens. Alterou a vida de mais de seiscentos sobreviventes, incluindo Gabriel. Alterou a vida de familiares e amigos. Alterou a minha vida. Senti medo de sair à noite, não falei sobre o incêndio por muitos anos por ser difícil de aceitar que poderia ter sido eu, meus primos ou amigos. Sinto tristeza e revolta em perceber que não há nenhum tipo de reparação simbólica que permita abrir espaços para elaboração dos traumas e
dar lugar ao luto coletivo e pelo fato da tragédia continuar matando silenciosamente por seus efeitos destrutivos. Por esses e outros motivos, precisamos falar sobre a Kiss e sobre o que tem acontecido nessa primeira década após o incêndio para que isso nunca mais se repita. E a sua vida, caro/a leitor/a, alterou?
Vamos retornar a imagem que Gabriel nos oferece. Por ora vou tecer apenas alguns comentários sobre ela que me tocaram profundamente. Ressalto que este é apenas um olhar a respeito dessa potente e forte imagem. Longe de encerrá-la a uma significação fechada, reconheço que tem muito a nos dizer.
Começo pelas poucas árvores dispersas na clareira. Elas denunciam que ainda somos poucos a ocupar espaço no terreno que diz respeito a Kiss. Descer do sobrevoo e adentrar a clareira é um desafio singular e coletivo. Um exemplo disso são as vigílias que acontecem nos dias 27 de cada mês. Elas ainda são espaços muito restritos a alguns familiares, sobreviventes e amigos. Ir na vigília é conhecer histórias, como as de Andrielle. Ela tinha muitas amigas, curtia festas, tocava violão, não gostava de tirar fotos, usava piercing e queria muito fazer tatuagem. Detalhes da vida de uma jovem que poderia ser minha ou seu/sua familiar ou amiga e que desloca nosso olhar dos números para as histórias singulares e inumeráveis. Se números frios não tocam a gente/Espero que nomes possam tocar, diz na poesia de Bráulio Bessa. Em uma vigília escutei essa e outras histórias de Andrielle. Pude ser mais uma árvore na clareira. Onde há mais árvores, há mais ar para respirar – apesar de tudo que a tragédia causou e causa. Levei tempo para ir, mas estou certa de que não vou esquecer de Andrielle. Essa é a beleza da imagem de Gabriel: uma sensível convocação para criarmos uma comunidade mais solidária e empática nessa clareira com presença e corpo real para construir caminhos coletivos. Sozinhos podemos pouco. Temos que ser um + um + um +. E então poderemos muito, lembrando a jornalista e escritora Eliane Brum. Qual a nossa responsabilidade coletiva enquanto cidadãos frente à dor e ao sofrimento que o incêndio na boate Kiss ainda causa?
Quanto mais dispersos ficamos uns dos outros nessa clareira – por medo, covardia ou quaisquer outras razões – menos possibilidades teremos de conhecer verdadeiramente histórias que cada um de nós tem para contar desde o dia 27 de janeiro de 2013. Quanto mais certezas tivermos quanto ao que achamos que sobreviventes e familiares devem ou não fazer ou dizer, mais estamos falando da nossa capacidade de negar a tragédia e de se defender psiquicamente daquilo que não queremos falar. Freud nos advertiu de que aquilo que não pode ser falado, também não pode ser elaborado e compreendido. Imagine você, leitor/a, como tem
sido estar há quase dez anos, janeiro após janeiro, sobrevivendo nessa clareira de árvores dispersas.
Outro aspecto da imagem diz respeito ao laço por fricção. Temos conhecimento de que o ato de friccionar gera fogo. Com isso, Gabriel rememora que a corda que liga as árvores e a construção do laço entre tantas pessoas aconteceram e ainda acontecem pela existência do incêndio naquela noite. É o caso do fotógrafo Dartanhan Baldez Figueiredo que ao longo dos anos construiu um verdadeiro acervo imagético (disponível em sua rede social) que registram tantas histórias de iniciativas promovidas pela AVTSM e pelos coletivos em prol de falar sobre a Kiss. Uma destas iniciativas fotografadas por Dartanhan foi a intervenção “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?” organizada pelo Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria. As fotografias capturam momentos de acolhimento e coragem coletiva para olharmos as perguntas e enfrentarmos a tragédia de mãos dadas.
Fonte: Dartanhan Baldez Figueiredo – 27/09/2022
A inauguração do Eixo ocorreu pela participação do presidente da AVTSM na reunião com o Coletivo, que desde setembro do ano passado realizou intervenções mensais em frente à Kiss para sensibilizar a população para os dez anos e questionar o silenciamento em relação à tragédia. A pergunta que nomeia a intervenção pode ser respondida pela população através do QRcode:
Nessas intervenções tivemos a oportunidade de conhecer a história de uma moça que pela primeira vez caminhava pela rua em que se localizava a boate. Assistiu toda intervenção do outro lado da rua encostada em um poste que visivelmente dava suporte para seu corpo estar ali. A moça perdeu seu melhor amigo naquela noite. Nos contou que ela e seus pais levaram o amigo até a boate e que ele ao se despedir deixou com ela o seu colar. Ao final da conversa, pudemos nos abraçar com carinho sem jamais termos nos conhecido antes e sentir que a dor ao invés de nos afastar, pode nos aproximar. Perder alguém que se ama é fazer tábula rasa, fala a escritora
Adriana Lisboa. É como ficar diante de uma folha em branco que precisamos registrar algo, mas sem saber por onde começar. Perceber que alguém se importa com as nossas dores ajuda a suportar a angústia desse branco diante do papel até que algum risco ou letra possam ser escritos.
Também conhecemos a história de uma jovem que perdeu seu irmão na Kiss. Entre muitos silêncios e poucas palavras disse estar ali por ela e por sua mãe. Para quem trabalha com as palavras, como psicólogos e psicanalistas, compreendemos as poucas palavras que ela pode enunciar. Existem momentos em que as palavras constroem sentidos, nos permitem organizar nossos mundos particulares, nos orientam, como verdadeiras bússolas, traçando o mapa de nossas vidas. Outras vezes, as palavras simplesmente nos faltam e não conseguimos nomear. Mesmo que se tenha algo urgente a dizer, não conseguimos falar o difícil de uma experiência traumática. Ficamos isolados e nos sentimos sem bússolas tentando sobreviver. Ou como nos diz a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, aprendemos o quanto do luto tem a ver com as palavras, com a derrota das palavras e com a busca delas.
Do laço por fricção ao laço por ficção. Fricção e ficção, duas palavras que diferem por uma letra. A primeira geradora de fogo; a segunda, de histórias. É destes últimos laços que precisamos. Laços criadores de empatia, solidariedade e coragem coletiva para encarar o difícil de uma experiência traumática que, mesmo dez anos depois, é uma ferida aberta e com lutos a serem elaborados. Para Gabriel, “curiosamente, o laço por fricção descrito na cena é, em seu fim, uma ficção que se coloca para tentar nos aproximar disso que foi devastado. A metáfora, aqui, é um artifício que nos aproxima de uma realidade difícil”. A verdade que precisamos incansavelmente dizer quanto a impunidade do incêndio é tão valiosa quanto as ficções que ainda precisamos falar (e muito) sobre a Kiss, como nos lembra a construção da psicóloga, colagista e componente do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria Luiza Roos, inspirada na ficção contada por Gabriel: