Dia dos Cristais – Por Betty B. Fuks

Dia dos Cristais – Por Betty B. Fuks

Muito já se associou a grave invasão à Esplanada dos Três Poderes da República, à invasão do Capitólio em Whashigton quando da eleição de Joe Biden. Aparentemente, o ato de violência dos trumpistas foi mimetizado por bolsonaristas em represália ao resultado das eleição do Presidente Lula. Até mesmo porque, como noticiado pelos mais importantes jornais brasileiros e americanos, aliados de Trump estimularam as incursões que assistimos estarrecidos ao Congresso Nacional, ao STF e ao Palácio do Planalto. Steve Bannon, por exemplo, ideólogo da nova direita radical populista, promoveu a hashtag #BrazilianSpring (“primavera brasileira”, uma referência à primavera árabe, onda de protestos contra ditaduras históricas em países no Oriente Médio e Norte da África) — para convocar os bolsonaristas à revolta pelo resultado das eleições. Mas quem sabe, chegou a hora de nos deixar guiar pelo velho ditado popular “as aparências enganam” e procurar outras pistas, não tão visíveis, que permitam mudar nosso ponto de observação. Sim, porquê se ficarmos apenas com a versão da cópia do ocorrido nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, certamente perderemos de vista a verdade que ela própria deforma.

Uma pista possível é a que nos leva à “Noite de Cristais” (9-10 de novembro de 1938). Na história da humanidade talvez essa seja a tragédia mais próxima à farsa que vivemos no Brasil, durante todo o dia 8 de janeiro de 2023. “Noite dos Cristais” é o nome dado ao quebra-quebra de vitrines e janelas das lojas, casas e sinagogas da comunidade judaica, deixando de saldo um tapete de cacos de vidro nas calçadas da Alemanha e Áustria, então anexada ao III Reich. Nessa noite, o furor dos vândalos nazistas encontrou respaldo na ocorrência de outros atos destrutivos, como o da queima sistemática de livros e obras de artes consideradas “degeneradas”,  criando um caminho à consolidação do projeto de extermínio do povo judeu, conhecido pela expressão “Solução Final”. A máxima do poeta Henrich Heine (1797-1895) -“Lá, onde se queimam livros, no fim se queimam pessoas” – traduz a realidade devastadora que significou esse processo de destruição.

Seria lícito extrapolar da “noite dos vidros quebrados”, outra das designações dadas à noite emblemática da violência antissemita, uma imagem que corresponda ao mar de cacos de vidros que se espraiou pelos jardins que circundam as sedes dos Três Poderes? Para nós, a validade dessa operação consiste em que a cena do vandalismo nazi pode ser reatada ao início de um governo que não escondeu, em nenhum momento, sua escolha de empregar a linguagem de ódio ao outro – aos índios, aos quilombolas, aos artistas, pensadores e a população de esquerda, aos nordestinos pela lealdade ao PT, ao grupo LGBTQ+, etc… etc. E que tampouco tentou disfarçar sua opção de utilizar a estética da destruição em suas decisões políticas: por exemplo, nos sucessivos incêndios criminosos de nossas florestas, assim como em seu desprezo pela vida humana durante o auge da  epidemia COVID-19.

De fato, a execução do projeto político de Bolsonaro contou com a manipulação sistemática da linguagem de modo a aliciar o povo brasileiro aos valores da ideologia, a visão de mundo, que se propôs a defender. O uso da linguagem na política, conforme lemos em Psicologia das massas, análise do Eu  possui seus efeitos mágicos dado a sua importância “à aptidão que ela tem de assegurar o entendimento recíproco do rebanho; nela estaria em grande parte fundamentada a identificação dos indivíduos uns com os outros” (Freud, 1921/2020), desde que, obviamente, todos se mantenham identificados à promessa o líder de protege-los do outro estrangeiro. Gustave Le Bon cuja obra, Psicologia da multidão(1895/2018) serviu à escrita freudiana de 1921, considerava a sugestão hipnótica como uma ferramenta potente à tarefa do Estado em seu empenho  de manter o povo submisso. E não sem surpresa lemos no livro de Hitler, Mein Kampf, suas recomendações ao Partido Nacional Socialista de adotar a palavra como estratégia de convencimento das massa, desde que “fosse possível contar com um exército de demagogos em alto estilo para influenciar, através da oratória, a luta contra o inimigo”(Hitler, 1925/1962/ p.296).

“A linguagem é mais do que sangue”. Com essa frase, cunhada pelo filósofo Franz Rosenzweig, Viktor Klemperer inicia seu livro LTI: a linguagem do Terceiro Reich. “A linguagem é mais do que sangue” ilumina com cores fortes o modo como a linguagem está na origem do totalitarismos do século XX. Uma afirmativa que sintetiza a ideia de que a língua na qual o sujeito  se expressa, sonha e pensa, é o fundamento de uma identidade, um sangue imaterial mais poderoso que o próprio sangue. E de novo, Hitler tinha consciência desse poder da linguagem: “a palavra falada, por motivos psicológicos, é a única capaz de provocar grandes revoluções” (Hitler, 1925/1962, p.293). Isso porque, a multidão hipnotizada, se transforma de tal forma que a subjetividade é destruída, dado que o homem, sendo um animal da horda, se une aos outros pela linguagem. Nos termos de Freud: “a massa está submetida ao poder realmente mágico das palavras, que podem provocar na alma as mais terríveis tormentas e também podem apaziguá-las” (Freud, 1921/2020, p. 149).

Somos, assim, conduzidos a refletir sobre o fenômeno do “Dia dos cristais” em Brasília, no terreno pantanoso da palavra de um líder que, embora ausente fisicamente, age sobre a própria ação da massa. Ou seja, a narrativa de que a eleição teria sido fraudada e o questionamento da lisura do pleito, motes de Bolsonaro antes e depois da eleição, geraram um acontecimento real e traumático – a invasão ao espaço do poder público. Dessa forma, o dialeto ideológico do populismo e nacionalismo de ultra direita, avessos aos diferentes registros sociais do multiculturalismo, deu origem às ações destrutivas encenadas pelos indivíduos da massa enlouquecida.

À luz do que precede, fica evidente que o discurso nazista, paroxismo do ódio ao outro, encontra na atualidade um solo fértil à repetição da tragédia. A história se repete, “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, escreveu Karl Marx, logo no início de seu famoso livro 18 de Brumário de Luiz Bonaparte. O que nos permite dizer que a horda invasora das Casas do povo brasileiro repetiu de modo caricato a trágica “Noite dos Cristais”. Uma farsa que não pode ser considerada menos trágica do que a tragédia. Bons fascistas odeiam a cultura, conforme bradava Joseph Goebbels, o Ministro de Propaganda da Alemanha de Hitler citado por Roberto Alvim –  um dos secretários da Cultura do governo de Bolsonaro -,como modelo de referência a ser seguido em seu mandato.

O que se pode depreender do ataque à sede dos Três poderes é que, mais além de uma simples imitação do episódio encenado pela turba trumpista, os bolsonaristas radicais num estado de “servidão voluntária” ao líder, conjugaram a linguagem do ódio ao outro à estética da destruição. Nessas circunstâncias, cometeram um ato de barbarismo sem precedentes no país. Para nós, não é difícil entender que, ao devastar bens culturais inestimáveis do povo brasileiro e os signos de sua democracia, a turba bolsonarista ultrapassou os campos do político e do jurídico, dando lugar a que cada indivíduo viesse a usufruir, sem qualquer constrangimento, do gozo de destruir.

Por fim, examinando mais de perto alguns outros pontos comuns entre a “Noite dos cristais” e o “Dia dos cristais”, adverte-se que o ex-presidente Bolsonaro, como era de se esperar, ao sustentar a narrativa de que “jamais teve qualquer relação ou participação nesses movimentos sociais espontâneos realizados pela população”, repete em cópia a declaração do Reich alemão sobre a destruição do patrimônio dos judeus. Segundo o verbete “Noites dos Cristais” da Enciclopédia sobre o Holocausto, o Führer havia decidido que as manifestações das massas contra os judeus não deveriam ser reprimidas, pois pareciam  ter sido espontâneas.  A semelhança da desresponsabilização dos dois líderes populistas pelo vandalismo de suas turbas,  não chega a espantar: ambos tentam apagar as pistas que levam à resolução de um crime.

Bibliografia.

Le Bon, Gustave, Psicologia das multidões. São Paulo: Martins Fontes. 2018. (Originalmente publicado em 1895).

Hitler, Adolf. Mein KampfMinha luta. São Paulo: Mestre Jou, 1962, p. 296. (Originalmente publicado em 1925)

Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. In. Obras Incompletas.

O Mal-estar na cultura e outros escritos: Belo Horizonte: Autêntica: 2020.(Originalmente publicado em 1921).   

Kemplerer, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2009.

https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht