A última noite – Por Bruno Tarpani

A última noite – Por Bruno Tarpani

A propósito do sono, aventura sinistra de todas as noites, podemos dizer que os homens adormecem diariamente com uma audácia que seria incompreensível se não soubéssemos que é fruto da ignorância do perigo – Baudelaire

 

Há um conto de Borges – não me lembro do nome agora – que nos conta a história de um homem que, após sucessivos sonhos que aos poucos dominam a inteireza de sua vida, percebe que, na verdade, pertence ao sonho de outra pessoa.

Eu estava assistindo atentamente ao último debate presidencial – sabia que isso me custaria valiosas horas de sono, pois há dois meses me encontro a alguns fusos de distância do Brasil. Eram-me evidentes os solavancos de Bolsonaro. Ele estava preocupado, como quem sabe que suas últimas chances estão se esgotando, e que sua queda – pois ela sempre vem – não será um evento privado, mas um banquete que se comerá em público. Em seu rosto estalado pela força de mil olhos, via-se alguém que sabia que em breve seria jogado à sorte, como assim o fez com muitos que o apoiaram até aqui. Via-se alguém que aos poucos percebia que o máximo amor e devoção convidam, para o mesmo espetáculo, a mutilação e o desprezo. A história assim nos mostra, numa didática bestial, no destino de Mussolini: o mesmo corpo que foi alçado às glórias de um César, foi pisoteado num demoníaco fervor coletivo.

Com o avanço da noite, apesar de toda a atmosfera de tensão, sentia crescer o peso de meus olhos, mais reais do que nunca, ao mesmo tempo que minhas ideias davam as costas ao sonho da razão: “a última noite da grande noite chegou” – pensei, sem pensar. E então me ocorreu a estranha ideia de que, quem sabe, todos esses anos nada mais tenham sido do que um passeio mórbido ao sonho envergonhado e furioso de um homem. E como todo sonho de alguém, fora também o pesadelo de muitos.

Entramos num mesmo barco atirado às tempestades por onde desfilaram as arrepiantes cenas de um homem perdido em si. “Fique aqui comigo, Lula, fique aqui comigo” : essa é a estrutura débil do convite que fomos forçados a aceitar há pouco menos de quatro anos – “fiquem comigo, eu lhes mostrarei o meu mundo”. Um mundo onde a respiração, esse índice da vitalidade, nos faltou e a muitos abandonou. Os que ficaram, provaram o sabor do alcatrão. “Fiquem comigo”. Não, Jair, eu não quero ficar perto de você. Me deixe dormir, sonhar.

Não se sai ileso de um pesadelo, pois nele algo em nós desperta, por mais que voltemos a dormir. O pesadelo-bolsonaro escancarou verdades inconvenientes e, em geral, insuportáveis e ainda incompreensíveis. Há mais de um século, a psicanálise inaugura na modernidade uma abordagem exótica aos sonhos: não os deixa quietos, mas os convoca a falar, para elaborar. Trabalho que precisa ser alçado à dimensão coletiva nos próximos anos, do contrário, não faltará sorte ao sempre renovado risco do retorno do mesmo. Importa passar o sonho à palavra, para que esta não passe por cima de nós – como sujeitos e como sociedade.

Assim como passou, retumbante e nunca tardia (me acordando num susto alegre), por cima de Bolsonaro, quando este, em suas considerações finais, agradece a Deus por tudo, mas como quem suplica, em segredo, que sejam perdoados os seus pecados, e que lhe sejam devolvidos os direitos de um passado medíocre – no caso, como deputado federal -, de um tempo no qual ele ainda não havia tocado no fogo dos deuses – e com este, ao invés de luz, trouxe o incêndio típico dos Neros: Pai, não vês que estou queimando?

Resta a ele, Bolsonaro, queimar pateticamente numa chama que marchará lenta e determinada pelo pavio. Ele ali soube – ah, sim! agora me lembro… o nome do conto: “os sonhos não devem durar mais que uma noite”. Ele ali soube que despertaria na companhia de seus atos. Falhos, todos.