Como encontrar algo de doçura em colmeias de pedra? Luiz Eurico Tejera Lisbôa foi uma pequena abelha inquieta e revoltada que tentou encontrar neste país espaços de sonho, de liberdade, de solidariedade em uma época em que o Brasil viveu o terror da ditadura civil-militar implantada a partir do golpe de 1964. Ele foi assassinado em São Paulo, em setembro de 1972, pelo regime militar e seu corpo ficou desaparecido até 1979. Ico, como era chamado, vivia na clandestinidade e morava em uma pensão simples no bairro Liberdade. Tinha 24 anos e lutava por liberdade em seu país. Suzana Lisbôa, sua companheira, e sua família o procuraram por anos até encontrá-lo no cemitério de Perus, em São Paulo.
Ico havia sido enterrado clandestinamente com o nome de Nelson Bueno. Ele foi o primeiro desaparecido político a ser localizado no Brasil. Nos registros sobre sua morte, constam laudos e perícias forjadas narrando o crime como suicídio. A descoberta foi feita no momento em que o Congresso Nacional votava a Lei da Anistia em 1979, e foi lá que a denúncia ganhou repercussão nacional. A imagem da “colmeia de pedra” é do próprio Ico, em um dos poemas que deixou, no qual escreve “Os jardins fenecem sem sol/sem luz/entre colmeias de pedra…” O mel que ele nos deixou são seus poemas de juventude, onde tenta dar forma a sua indignação com o que acontecia no Brasil. Ele sonhava com outras paisagens, com outras navegações e nos deixou um testemunho de seu pensamento em alguns poemas. Gosto especialmente do último poema que enviou para Suzana, em que nos propõe um pensamento aquático perto, talvez, de alguma ilha utópica. “Patos azuis selvagens/ dos grandes lagos/pousaram resvalando/na limpidez do meu pensamento esta manhã.”
Pois acaba de ser lançada, a segunda edição de um livro que reúne uma coletânea de poemas guardados por Suzana Lisbôa. São versos comoventes, que contam parte desta história e nos trazem imagens preciosas da força de um posicionamento diante da vida que ele assumiu corajosamente. A primeira edição foi em 1999. No livro, organizado por Antonio Hohlfeldt e intitulado “Condições ideais para o amor” além dos poemas, encontramos uma serie de cartas à Suzana e depoimentos de amigos de militância, um lindo texto da irmã Noeli contando algumas histórias da família Lisbôa e lembrando que o Ico era um exímio fabricante de pandorgas e campeão de botão de mesa, da Suzana narrando a saga da procura pelo companheiro e um texto iluminado e precioso de sua mãe, Clelia Lisbôa. Em uma carta aberta, escrita logo depois do encontro do corpo do seu filho, em setembro de 1979 ela escreve:
“Não choro de pena do meu filho. E, se fosse possível voltar de onde ele está, eu lhe pediria para continuar pensando e agindo como sempre pensou e agiu. Ainda que isso importasse em ser novamente assassinado. Pois prefiro vê-lo morto, uma e mil vezes, a tê-lo por longos anos a meu lado numa inconsciência inútil, estúpida e criminosa… Luiz Eurico Tejera Lisbôa, onde quer que esteja, há de estar pedindo justiça e liberdade para este povo humilde e esquecido que ele tanto amou”.
Palavras que homenageiam o filho com carinho e relançam a força de uma esperança, tão fundamental para que a vida reencontre sempre sua primavera. Em um dos poemas Ico escreveu “Gradualmente descansarei minhas pálpebras de alumínio”. Sua vida foi breve, mais imensa. Foi vitima de um país que torturou, matou e que ainda tenta apagar os registros de memória de todas estas histórias. Ele deixou poemas para um Brasil tão carente de memoriais e que mesmo depois da redemocratização reconduz ao poder um presidente que em pleno Congresso Nacional celebrou um torturador. Esta ferida na memória é um desafio e responsabilidade de todos nós, pois não haverá futuro possível sem nos conectarmos com a herança que recebemos deste tempo de chumbo. Como escreveu Emil Cioran, uma sociedade sem utopias está condenada a esclerose e a ruína.
O livro que agora chega a nossas mãos segue o caminho aberto por outro livro fundamental organizado por Alberto Pucheu intitulado “Poemas para exumar a história viva” (Cult Editora, 2021). Neste, encontramos, junto com o Luiz Eurico, 24 outros poetas militantes que sonharam com um outro Brasil e lutaram contra a ditadura. Livros poéticos como memoriais que cuidam de feridas abertas.
Mais do que nunca, é tempo de encontrarmos as palavras destes poetas que escreveram uma história do Brasil que ainda não conhecemos o suficiente. Nei Lisboa, músico e poeta, escreveu na orelha do livro. “De minha parte, choro por quem se foi e por aquilo que sonhava e que, tantos anos depois, nem perto está de se realizar. Luiz Eurico era meu irmão, onze anos mais velho, e com ele aprendi desde o berço a soletrar justiça, liberdade, humanidade.”
Tempo de soletrar estas palavras com força e determinação para que este tempo que ele enfrentou não se transforme em um “espirro da História” como escreveu Ico no poema Sinal dos Tempos.
Esperamos todos que o sinal dos tempos seja algo próximo do que escreveu Ernst Bloch em sua trilogia O Princípio Esperança, em que diz que a utopia quis enxergar bem longe, mas apenas para atravessar a escuridão bem próxima que acabou de ser vivida. O livro agora relançado é um convite a novas navegações com a determinação dos patos azuis selvagens do Ico.
Publicado no caderno DOC do Jornal Zero Hora em 15/10/22
Edson Luiz André de Sousa é Psicanalista, autor entre outros, de Furos no Futuro: psicanálise e utopia (Artes&Ecos,2022)