Julho de 2022. O convite a falar a uma jornalista sobre as relações entre saúde mental e eleições faz lembrar que período eleitoral e voto são tempo e ato pertencentes a um contexto mais largo, pois a importância das eleições e do voto está no fato de fazerem parte de nossa vida cidadã. Melhor seria poder então conversar sobre as relações entre saúde mental e democracia, sendo eleições e voto apenas uma manifestação da vida democrática, relacionada aos salutares direitos de ver e de ser visto, de falar e de ser escutado.
O curioso, entretanto, é que nos interesse abordar um serviço especificamente criado em torno das eleições, no entreturnos eleitoral de 2018, e que perdura há 4 anos. O Escuta Sedes foi criado por um grupo variado de trabalhadores da saúde mental, dentre os quais diversos psicanalistas, atentos ao retorno de um autoritarismo arcaico naquele cenário eleitoral e mobilizados à conversa coletiva, tanto por suas próprias inquietações quanto pela percepção, na clínica cotidiana, de um significativo aumento da angústia figurada em conflitos intersubjetivos – conflitos com a família, com os colegas, com os amigos – e caracterizada pelo estranhamento de crenças e posições dos outros.
Não era difícil perceber que a aceitação tácita, pelo Congresso Nacional, de elogio à tortura praticada por agente de Estado, tal como ocorreu em 2016, disseminara a crueldade fora da lei como discurso e a banalizara como mera “maldade favorita”. Até hoje isso segue, impregnado no corpo social e legível nas manchetes que anunciam, como contrapartida, “pacotes de bondades”. Não nos encontrávamos, portanto, apenas diante de uma situação de polarização, como desafortunadamente se costumou dizer, tampouco de uma retórica do insulto. Pois, se fosse o caso, teria sido possível revertê-la – como tentaram, por exemplo, os movimentos sociais reunidos em torno de dizeres feministas, tais como Ele não. Lembremos que a reversão de um insulto é praticada pela humanidade ao menos desde a Grécia Antiga, onde a palavra democracia foi originalmente o nome inventado pelos adversários dos democratas para insultá-los: por democratas eles designavam os pobres, as pessoas que não possuem nada, nenhum poder de dominação. Os democratas fizeram desse insulto um nome, adotando-o por sua convicção acerca da igualdade existente entre qualquer ser falante com qualquer ser falante. E a palavra democracia “pegou”, a despeito do ódio que contemporaneamente a experiência democrática possa suscitar.
Mais além do insulto, porém, em 2018 nos encontrávamos diante de uma descontinuidade da promessa civilizatória que tanto proíbe o assassinato do outro, do “estrangeiro”, quanto o desfrute abusivo do “familiar”. Que deste modo estavam em jogo importantes riscos para as singularidades e as sociabilidades foi talvez mais imediatamente sentido, no cotidiano, pelos sujeitos experientes na vulnerabilidade devida a seu ativismo político ou a seu pertencimento a grupos minorizados – velhos, gays, pretos, mulheres, adolescentes face a face com os “podres poderes” que Caetano Veloso cantava em 1984. Ansiosos, eles vieram massivamente para as rodas, de início realizadas diariamente, às vezes mais de uma vez ao dia, assim como vieram professores, cientistas sociais, jornalistas, estudantes e profissionais da cultura, das artes e ofícios, do direito, da saúde e da educação, habituados à lida com essas questões, da qual eventualmente decorre alguma lucidez política.
Há muito se diz que “a fantasia é a louca da casa”. E é: a fantasia como perda da função da realidade, segundo Freud. Isso significa que o sofrimento psíquico deriva de conflitivas entre o Eu e seus fantasmas, ou seja, as marcas inconscientes, do erotismo e dos lutos vividos ao longo de nossa constituição subjetiva, que nos assombram. Mas, se a fantasia é a louca da casa, a crueldade é a louca da cidade. Quer dizer que também somos submetidos a embates psíquicos entre o Eu e o real da violência que vem do campo político e social. Portanto, mesmo depois que somos crescidos, podem produzir-se marcas desestruturantes de nossa subjetividade, ou seja, podemos ser sobrepassados por súbitas experiências inéditas, cujo silenciamento dificulta a vida e a vivacidade. É um critério clínico elementar o da prestação de imediato socorro diante desse tipo de ocorrência potencialmente traumática, em que se impõe o reconhecimento de danos físicos, morais e psíquicos, para que os impulsos destrutivos não se voltem contra a própria pessoa e a indignação possa se tornar ação refletida. Em contextos assim, não é possível ir se acostumando, como pretenderam alguns. Como ir se acostumando a sobressaltos paranoicos, a alergias de contato, a inapetências, a insônias ou pesadelos, a isolamentos melancólicos?
Por estarem em jogo determinações coletivas dessas afecções, era preciso inventar uma forma coletiva de favorecer suas elaborações. Tratar de uma miséria social comum, necessariamente compartilhável. Dar cabimento a uma palavra sem destino. Assim lançamos nosso convite, formulado a partir do que vínhamos escutando nos ambientes públicos ou privados nos quais trabalhávamos:
A situação política atual tem mexido com você? Com suas relações familiares e de amizade? Você se sente desamparado(a), ameaçado(a), preocupado(a)? Tem tido pesadelos ou perdeu o sono? Venha participar das Rodas de Conversa – Escuta Sedes, lugar de acolhimento e troca de experiências.
Esse acolhimento se dava então através da criação do dispositivo clínico que designamos rodas de conversas – um espaço aberto, não partidário e gratuito, que favorecia o reconhecimento das questões comuns: não se destacavam tanto as identidades nesses agrupamentos heterogêneos, relativas às diferenças culturais, raciais, de classe econômica, gênero ou idade dos participantes, e sim a identificação do que trouxe cada um para a roda do dia. Esse reconhecimento se tornou, para muitos, um pertencimento. Acolhimento – reconhecimento – pertencimento foram as formas de uma lógica da hospitalidade, entre a rua e o divã, em resposta à crescente hostilidade no campo social. De fato, houve usuários que estiveram conosco por muitas rodas, por semanas, por meses, por anos. Outros que vieram uma única vez, a fim de encontrar sua expressão num espaço de palavra livre para o reposicionamento em seus vínculos. Como aconteceu ao homem pacato e amoroso que trouxe para a roda a experiência de haver convidado sua mãe octagenária a encerrar a visita que ela lhe fazia, ao tornar-se intolerável a intenção de voto por ela declarada. Ele veio a uma roda simplesmente para narrar isso, encontrar lugar para testemunhar seu pesar, dizer do que lhe aconteceu.
Outros narraram sua história de luta vital, mais ou menos breve, mais ou menos longa, encontrando lugar para coexistir e para referenciar novas buscas de recursos cidadãos com os quais contar – recursos por intermédio dos quais pudessem iniciar um trabalho terapêutico em sentido estrito, ou acessar equipamentos de defesa de direitos ou de atenção psicossocial, ou reencontrar os termos da insistência de seu ativismo, ou ainda intensificar sua experiência cultural. Pois o caráter imaginativo dos objetos de arte e de cultura consente com nossa própria reconstrução autobiográfica, num aprofundamento das verdades efetivamente vividas através do encontro de figuras de linguagem. Por isso a arte chegou mesmo a nos reunir em rodas especiais, nas quais um filme de cinema foi tomado como objeto mediador de conversas que tematizaram relações com distópicas crenças (Divino amor, 2019, de Gabriel Mascaro) ou com documentais ansiedades do trabalho (Estou me guardando pra quando o carnaval chegar, 2019, de Marcelo Gomes).
A pandemia de Covid-19 como fato político que atualizava as violências intensificou o estado de mal-estar social. Novas experiências de indiferença e de exclusão no meio social trouxeram o predomínio do luto e às vezes da melancolia a muitas conversas. Neste contexto, a viabilidade das rodas online também trouxe consigo o inesperado ganho de acesso em termos geográficos e a percepção ampliada de que valem os novos laços tecidos na partilha do desamparo, tratado coletivamente como afeto que faz a roda girar.
O trabalho elucidou, por fim, a necessidade de ritualizar perdas sofridas para que novas palavras vigorem, protegendo a cultura contra a barbárie. Alguma ocupação da via pública, da rua, afinal já é possível a quem se guardou esperando nova eleição chegar. O direito fundamental à sustentação da palavra, institucionalmente assegurado, pode ser o resultado comum, prosaico, desse trabalho compartilhado.
Silvia Nogueira de Carvalho é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do coletivo Escuta Sedes.
Imagem: foto de Sílvia Nogueira de Carvalho de Lux, 2008, Laura Vinci