A Devastação Perversa – Por Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr.

 

Vivemos um processo de devastação da vida, da cultura, da dignidade humana, das riquezas e das instituições do nosso país. Os sentimentos decorrentes dessa destruição, arquitetada perversamente, são múltiplos, indo desde o medo, a raiva, o nojo, a indignação, até a mais surpreendente apatia e indiferença, que, por vezes, parecem uma forma de cumplicidade silenciosa.

Tempos difíceis, pois, além de lidar com o colapso do sistema de saúde, acentuado por uma verdadeira degradação política, que acarreta severas consequências psíquicas e econômico-sociais, somos defrontados com um governo capaz de demonstrar uma total falta de empatia e respeito com a dor dos outros, a ponto de ultrapassar limites considerados civilizatórios. Os exemplos são muitos, mas destaco dois recentes: “chega de mimimi, vão ficar chorando quanto tempo”? “Vai comprar vacina. Só se for na casa da tua mãe”. Detalhe: são palavras do presidente da nação. Alguns podem confundir isso com democracia; trata-se, na verdade de pornocracia. Nesta, não há responsabilidade com a palavra: tudo pode ser dito sem haver consequências. Por isso, esses apolíticos buscam apenas chocar, escandalizar, arrombar, desmentir e propagar o ódio mediante uma racionalidade paranoica sustentada através de perversões generalizadas.

Dufour (2009), em A cidade perversa: liberalismo e pornografia, refere que, quando o obsceno invade a cena pública, tornando-se ato de Estado, dá-se a pornocracia, ou seja, a mostração do gozo com aparente legitimidade. Diante de tamanha impostura, precisamos deixar uma questão clara: apesar de a lógica binária ser sempre um artifício sustentado pelo responsável por esse caos, não se trata de esquerda ou de direita, de cidadãos do bem ou malvados, de liberais ou supostos “comunistas”, pois o que está em questão é algo muito precioso: a diferença entre barbárie e civilização. Quando não há compaixão, quando não se respeita o luto de quase trezentas mil pessoas mortas, estamos num estado de barbárie. Como é possível que algumas pessoas ainda encontrem justificativas para tentar minimizar as consequências disso? Muitas se dizem esclarecidas, com qualificações, conhecedoras do mercado e da economia. O que elas diriam do que a imprensa estadunidense, francesa, alemã e inglesa estão falando do Brasil? Será possível que elas não perceberam o quanto nosso país se tornou um pária internacional? Teriam as maiores potências mundiais virado comunistas perigosos? Aqueles que insistem em separar a economia da vida não entenderam que as medidas preventivas, o distanciamento social e a vacina são indispensáveis para recuperarmos a economia?

Aprendemos com Freud a importância de o psicanalista estar advertido em relação às manipulações perversas que incidem no laço social. Para o pai da psicanálise, compreender as perversões é uma espécie de compromisso social e preservação da cultura, haja vista a sua preocupação com a manutenção dos laços e a vida coletiva, pois os seres humanos precisam, em nome do coletivo, sacrificar suas pretensas liberdades para o bem da comunidade. Do contrário, alguém, regido pelo imperativo do gozo, poderia encarnar a lei, não se submetendo a ela, colocando em cena a recusa da alteridade e destituindo os outros de sua condição humana.

É, portanto, nossa responsabilidade termos coragem para superarmos diferenças e nos unirmos em defesa da vida, do amor e da compaixão, pois somente assim poderemos impedir que a catástrofe se instale.

 

Imagem: Sinais: imagem de Porto Alegre durante a pandemia: bandeira do Brasil junto ao semáforo Jefferson Botega / Agência RBS

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. é Psicanalista, doutor em psicologia social (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão, Appris: 2019.