- Do relicário de uma epidemia no Brasil de Ramon Navarro e Debora Diniz
Vocês são como vírus? Formulo essa estranha pergunta ao consentir com a leitura do atualíssimo livro do psicanalista Joel Birman (O trauma na pandemia do coronavíirus – suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Civilização brasileira, 2020).
Não contava com a ousadia dessa interpelação, ainda que soubesse dos caminhos férteis a trilhar na companhia do autor – impressão produzida desde minha frequentação de sua obra e intensificada por ocasião de sua conferência na 20ª jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, de novembro passado.
Na ocasião, Birman convocou-nos a pensar a catástrofe da pandemia do coronavírus em suas duas linhas de força – a catástrofe civilizatória e a catástrofe sanitária –, explicitando os dois grandes modelos de governabilidade que neste contexto se apresentaram: o modelo da prevalência da vida (do qual Europa e Ásia são exemplos) e o modelo do imperativo econômico (por exemplo, nos EUA e no Brasil).
Daí derivam duas séries de equivalências que Birman nos convida a identificar, em sua relação com cada uma dessas polaridades.
Numa primeira torção e na direção do pensamento foucaultiano[1], o primeiro modelo de governabilidade, o da prevalência da vida, implica a biopolítica de controle da circulação social do contágio – que marcou presença na Europa a partir dos séculos XVI e XVII através do dispositivo de quarentena diante da peste.
O segundo modelo de governabilidade, o modelo do imperativo econômico, por sua vez, coloca em jogo a necropolítica pela qual resultam matáveis as vidas dos que neoliberalmente valem menos: as vidas dos pobres, dos pretos, dos velhos e dos doentes. Em uma palavra, a reiteração do medieval dispositivo de expulsão da lepra.
Uma segunda torção invoca a dualidade entre os conceitos psicanalíticos de desamparo e de desalento. Assim, a governabilidade baseada na prevalência da vida confronta os sujeitos à angústia frente à sua condição de desamparo: como na metáfora cara ao Mercador de Veneza, de Shakespeare, resta “entregar a bolsa”: deixar-se atravessar pela marca alteritária de uma ciência crítica.
O modelo do imperativo econômico, ao invés, circunscreve a experiência do trauma, pelo qual o sujeito não pode se antecipar ao pior diante do invisível e do indizível. O modelo necropolítico da lepra resulta, portanto, em um a mais de desamparo, que Birman teorizou como desalento[2], o qual demanda a “entrega da vida”, por exemplo ao negacionismo pentecostal.
Prevalência da vida: modelo biopolítico da quarentena diante da peste: angústia e desamparo: a entrega da bolsa: ciência crítica.
Imperativo econômico: modelo necropolítico da expulsão diante da lepra: trauma e desalento: a entrega da vida: negacionismo pentecostal.
Em exposição oral realizada em março do ano passado, nosso colega Mario Fuks chamou a atenção para o fato de estarmos vivendo um tempo de intensificação do Mal-estar na cultura (1930) estudado por Freud, no qual temos “todos os quadradinhos deste esquema ticados: o coronavírus, de evolução incerta, pelo lado do corpo; as chuvas, enchentes e desabamentos que produzem cada ano mais vítimas, pelo da natureza; e o terceiro quadradinho, pelo lado das relações com os outros: as ameaças provenientes da gestão desse governo, principalmente de seu chefe, que ataca a educação, a ciência e a cultura…”[3]
Um ano depois, cabe-me assinalar a hipótese de que, no Antropoceno (esse novo período geológico sob o qual vivemos, no qual as atividades humanas começaram a ter impacto global significativo no clima do planeta e no funcionamento de seus ecossistemas), as duas primeiras fontes do mal-estar resultam produtos da terceira fonte conceitualizada por Freud: a fragilidade do corpo humano e as catástrofes naturais têm sido ativamente produzidas pelas relações entre os homens.
A autenticidade do reconhecimento dos limites impostos às nossas vidas na atualidade é avessa ao mecanismo psíquico da recusa, pelo qual são negados elementos que vêm do campo da percepção – elementos tais como o número de vidas perdidas, que indicam a persistência dos riscos de estarmos fisicamente juntos. Reconhecimento imprescindível para a preservação do espaço democrático, que se pode definir pelo direito de olharmos e sermos olhados, de escutarmos e sermos escutados uns aos outros. Haverá de ser preciso seguir investindo nossa imaginação para recriar essas formas, modulando, entre telas, nossa sede do encontro presencial; transmutando a apresentação íntegra dos nossos corpos na escrita dos nossos nomes, na imagem dos nossos rostos e no movimento – olhares, gestos e vozes – que nos autenticam online.
Afinal, é preciso compreender bem o que é um vírus, na principal especificidade que o diferencia dos viventes: a reprodução – posto que um vírus se reproduz de forma autônoma, precisando apenas invadir e infectar nossos organismos vivos, tomando-nos como hospedeiros[4]… Mais além dessa entidade material biológica, porém, e no exercício revolucionário da literatura, diz o Requiem do escritor italiano Antonio Tabucchi que o inconsciente é algo como um vírus: apanha-se[5].
Pensemos que em 2020 começou de fato o século XXI – porque o início de um novo século não seria exatamente cronológico e sim seria lógico, caracterizável pela emergência histórica de uma descontinuidade que transforma radicalmente nossas formas de vida e de sociabilidade, nossas relações com o tempo e com a produção de sentido[6]. Essa afirmação é endossável pela experiência de algo similar ter se dado na passagem de século anterior: também o século XX teria começado um pouquinho mais à frente de 1900 (ano glamoroso, em todo caso, quanto à psicanálise, por seu marco de nascimento, derivado da publicação de A interpretação dos sonhos por Sigmund Freud). Efetivamente, o advento da Primeira Guerra Mundial em 1914 definiria logicamente o início do século XX.
Para concluir, lembro que 1918, último ano daquela Guerra, foi também o primeiro dos três anos pandêmicos de duração da gripe espanhola. Foi ainda o ano em que Freud registrou suas ideias sobre os Caminhos da terapia psicanalítica no artigo publicado em 1919. No contexto das experiências radicais da guerra e da peste, Freud se ocupou de vislumbrar a possibilidade de que a psicanálise fosse uma prática aberta ao povo. O escrito termina assim:
E agora, por fim, gostaria de enfocar uma situação que pertence ao futuro, que para muitos dos senhores parecerá fantasiosa, mas que merece, creio eu, que nos preparemos para ela em pensamento. Os senhores sabem que a nossa eficácia terapêutica não é muito intensa. Somos apenas um punhado de gente, e cada um de nós, mesmo com um grande esforço, só pode se dedicar a um número pequeno de pacientes em um ano. Contra o excesso de sofrimento neurótico que existe no mundo e que talvez não tenha de existir, aquilo que nós conseguimos eliminar desse sofrimento é praticamente irrelevante em termos quantitativos. Além disso, devido às condições de nossa existência, estamos limitados às camadas abastadas e mais altas da sociedade, que costumam escolher, elas próprias, os seus médicos, e nessa escolha são desviadas por todos os preconceitos relativos à Psicanálise. Para as amplas camadas da população que sofrem muito profundamente com as neuroses, por ora nada podemos fazer.
Agora, suponhamos que através de alguma organização conseguíssemos multiplicar o nosso número, de modo que fôssemos suficientes para o tratamento de massas maiores de pessoas. Por outro lado, pode-se prever que, em algum momento, a consciência da população acordará e a alertará para o fato de que o pobre tem o mesmo direito à assistência anímica que ele já tem agora à assistência cirúrgica, que salva vidas. E que as neuroses não são menos ameaçadoras à saúde da população que a tuberculose e que, assim como esta, não podem ser deixadas a cargo de cada pessoa do povo. Então, serão erguidos instituições ou institutos de formação, onde trabalharão médicos de formação psicanalítica que através da análise manterão capazes, em face da resistência à produtividade, homens – que do contrário se entregariam à bebida -, mulheres – que ameaçam sucumbir diante do peso das renúncias – e crianças – que têm diante de si apenas a escolha entre a selvageria e a neurose. Esses tratamentos serão gratuitos. Pode ser que leve muito tempo até que o Estado perceba esses deveres como sendo urgentes. As condições atuais possivelmente ainda adiarão esse prazo, e é provável que a beneficência particular dará o primeiro passo com tais institutos; mas em algum momento isso necessariamente terá de acontecer.
Resultará daí para nós, então, a tarefa de adequar a nossa técnica às novas condições. Não duvido de que a força argumentativa das nossas crenças psicológicas também impressionará alguém sem formação, mas precisaremos encontrar a expressão mais simples e palpável dos nossos ensinamentos teóricos. Provavelmente teremos a experiência de que o pobre estará ainda menos disposto a renunciar à sua neurose do que o rico, porque a vida difícil que espera por ele não o atrai e o estar-doente lhe garante mais um direito à assistência social. Possivelmente, muitas vezes poderemos ter resultados apenas se conseguirmos unir, à maneira do imperador José, a assistência anímica e o apoio material. Muito provavelmente também seremos obrigados, ao utilizarmos a nossa terapia com as massas, a fundir o ouro puro da análise em grande medida com o cobre do sugestionamento direto, e também o influenciamento hipnótico poderia encontrar o seu lugar ali, assim como no tratamento dos neuróticos de guerra. Mas seja de que forma essa psicoterapia para o povo se configure, ou de que elementos ela se constitua, as suas partes mais eficazes e importantes certamente serão aquelas emprestadas da Psicanálise propriamente dita, livre desta ou daquela tendência[7].
Um século depois da indicação desses caminhos, e sob nova pandemônia, como poderemos lançar mão do saber da psicanálise para insistir em transformar as práticas sociais – da política, da saúde, da educação, do direito, da cultura, da arte, da assistência social – que nos dizem respeito?
Pensar o inconsciente como um vírus que se apanha permite interrogar as espécies de vacina que a partir dele poderemos produzir: intervenções psicanalíticas que inoculem doses de vida mobilizadoras da coragem dos sujeitos frente à miséria neurótica e à recusa perversa.
Findo o carnaval, seguimos desejando vacinas para todos. A partir da laive de Maria Bethânia, e com ela, além de vacina: respeito, verdade e misericórdia. Pois não haverá como nos transmutarmos tanto. Não, não somos como vírus – somos viventes. Irremediavelmente dependentes da tessitura dos laços que nos reúnem, portanto.
Fevereiro de 2021
Sílvia Nogueira de Carvalho é Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[1] Foucault, História da loucura na Idade Clássica, apud Birman, op. cit., p. 71 et seqs.
[2] Cf. Birman, J. O sujeito na contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.
[3] Fuks, M. P. Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea: aula inaugural 2020. Publicado em Boletim Online – Jornal digital de membros, alunos, ex-alunos e amigos do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Edição 54, junho de 2020. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=54&ordem=5
[4] Cf. Birman, op. cit., p. 27.
[5] Tabucchi, A. Requiem, uma alucinação (1991). São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 11.
[6] Cf. Birman, op. cit., p. 66.
[7] Freud, S. Caminhos da terapia psicanalítica (1919[1918]) in: Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, pp 200-202.