Ser Rede de Cuidado e Liberdade para Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional: diálogos necessários entre a Assistência Social e a Saúde Mental – Por Nathália Meneghine

Ser Rede de Cuidado e Liberdade para Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional: diálogos necessários entre a Assistência Social e a Saúde Mental – Por Nathália Meneghine

Ser Rede de Cuidado e Liberdade para Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional: diálogos necessários entre a Assistência Social e a Saúde Mental.

Por Nathália Meneghine, Psicóloga/Psicanalista e Professora.

 

O cuidado com a criança e o adolescente é históricamente marcado por um modelo de institucionalização. O trancar para cuidar foi um modo aplicado vastamente também no campo da assistência social, e, resquícios deste tempo ainda sobrevivem na atualidade.

Não é incomum que a mídia, e uma parcela da sociedade, discursem a favor do cerceamento da liberdade e do isolamento, como resposta às situações de vulnerabilidade manifestas por nossas crianças e adolescentes, através de seus comportamentos tidos como inadequados, desafiadores, intransigentes e merecedores de vigilância e punição. A lógica do isolamento dos desviantes não está extinta.

Do saneamento social da década de 20, passando pelo Código de Menores de 1979, que defendia internações em grande escala dos ditos “menores”, até a década de 90 com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, encarceramos, punimos, isolamos e violentamos massivamente nossa população infanto-juvenil, sob a mirada de prender e conter para controlar os ditos “desvios de conduta”.

Podemos até reconhecer que com o avanço do nosso conhecimento sobre desenvolvimento humano, dos estudos sobre a infância e a adolescência, avançamos nas normativas jurídicas, e em nossa práticas de cuidado. Um novo olhar sobre a peculiaridade da ‘pessoa em desenvolvimento’ tomou corpo e forma, mas não sem a sombra dos rótulos discriminatórios.

Enquanto, de um lado os avanços da ciência nos trouxeram maior conhecimento sobre as etapas do desenvolvimento humano, por outro, serviram como instrumento para as formas modernas de encarcerar: inventamos camisas de força químicas do tamanho de nossas crianças e adolescentes. A medicalização excessiva e precoce é, do nosso ponto de vista, um modo mais sofisticado de calar sujeitos que denunciam em seus atos a ausência de lugar no social e no afeto.

A Política de Assistência Social vigente preconiza linhas de cuidado específicas para crianças e adolescentes, quando propõe Serviços e Programas voltados para o atendimento dessa população, em diferentes níveis de proteção e complexidade, tais como: os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, da Proteção Básica, e os Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes, da Proteção Especial.

Dentre estes, podemos aqui adentrar um pouco mais no funcionamento do Acolhimento Institucional, por ter sido nosso campo de trabalho durante alguns anos, bem como pelos desafios inerentes a um Serviço de proteção, que ao mesmo tempo que institucionaliza, deve zelar pela personalização do atendimento, pelo cuidado integral, sem qualquer forma de privação de liberdade. Tudo isso de modo excepcional e provisório.

As unidades de Acolhimento Institucional, conhecidas como Abrigos, são um Serviço de Alta Complexidade, localizado no SUAS – Sistema Único de Assistência Social, dentro da área de abrangência da Proteção Especial. É uma medida protetiva determinada pela autoridade judicial, através da qual crianças e adolescentes, de zero à dezoito anos incompletos, são afastados temporariamente de suas famílias de origem, em razão de graves situações de maus tratos, negligência, abuso, abandono e violência.

Neste ato de afastamento por uma intervenção da Lei positiva, essa criança e/ou esse adolescente é encaminhado para uma unidade de acolhimento, ao mesmo tempo que um guardião ou guardiã legal é nomeado.

Vejam que existem nesse procedimento muitas questões sobre as quais poderíamos debater e conversar por dias inteiros… O ato em si é destitutivo e, ao mesmo tempo, institutivo, pois nomeia um Outro responsável por aquele sujeito. Um Outro com o qual ainda não há nenhum laço, mas ao qual ele deverá se submeter e reconhecer.

Esse Outro, nomeado guardião/ã, passa a ser convocado a ocupar um lugar de responsável por essa criança e/ou adolescente acolhido, lugar esse que precisa comportar uma dimensão de autoridade e de proteção.

Sabemos que esse lugar é um lugar a ser construído para cada um e com cada um que chega ao Serviço de Acolhimento. Não está pronto de partida. O ato legal de nomeação de um guardião/ã tem um peso jurídico e, obviamente, um peso simbólico enorme, mas o ato legal não sustenta sozinho todas as nuances e complexidades que precisam ser construídas e reconhecidas para que esse lugar se faça. E que se faça, no um a um.

Observem que não há garantias de que os lugares de cuidador e de cuidado serão ocupados, e de que modo funcionarão. Trata-se da exigência de operações subjetivas nesta cena.

Então, com essa dificuldade, uma criança, um adolescente, chega a uma casa, a um novo endereço, para ser cuidado, protegido, atendido em suas necessidades.

Por sua vez, essa casa é chamada a funcionar numa lógica de cuidado em liberdade. Uma unidade de Acolhimento Institucional não é uma unidade de acautelamento e privação. Portanto, seu modo de funcionar, o manejo com os ali acolhidos, não pode ceder às facilidades que as metodologias de controle dos corpos e punição prometem pela via da criminalização e da medicalização pouco criteriosa.

Ao contrário disso, um Abrigo, para se fazer abrigo, precisa humanizar suas práticas, priorizando a escuta da criança e do adolescente e construindo com eles as formas de cuidado, incluindo limites e afeto.

Importante dizer que, conforme vocês podem presumir, tratando-se de crianças e adolescentes que chegam até esse Serviço após terem sido submetidos a situações graves de violação de direitos, seus comportamentos são sintomáticos e denunciam toda crueldade vivida. São crianças e adolescentes com muitos entraves nas relações interpessoais, resistentes a construção de novos vínculos, e, muitas vezes, psiquicamente muito adoecidos.

Neste ponto, como em tantos outros, somos chamados a um cuidado compartilhado entre Assistência Social e Saúde Mental. Trabalhar nessa perspectiva do cuidado compartilhado abre novos desafios paras as equipes dos Serviços de Acolhimento Institucional, bem como para as equipes do CAPS -Centros de Atenção Psicossocial.

Da parceria de trabalho que temos tentado construir neste sentido, podemos considerar que é uma construção sempre desafiadora, em um campo muito tensionado, ainda com muitos desencontros. Em boa parte, esse tensionamento se alimenta da nossa resistência em dar lugar às nossas faltas pessoais e institucionais. Como consequência, muitas vezes, essa dimensão nos impede de trabalharmos mais efetivamente em muitos casos.

De outro lado, ainda que claudicando, não podemos nos furtar desse trabalho em Rede. O trabalho articulado é o que pode encorpar o ato de cuidar das crianças e adolescentes institucionalizados em risco social e psíquico.

Existem diretrizes comuns entre a Política de Assistência Social e a Política de Saúde Mental infanto-juvenil sobretudo no que tange a garantia do direito à palavra, a abordagem personalizada, o acolhimento da demanda, o trabalho no território, e o enfrentamento de estigmas e determinismos.

Nossa aposta de cuidado em liberdade e em Rede precisa considerar que, já identificadas nossas diretrizes comuns, podemos avançar na tessitura dessa Rede: assistência e saúde mental, pois é através dela que podemos veicular efetiva proteção a esses sujeitos, que nos chegam tão marcados pelas mazelas de uma sociedade ainda muito excludente e aversiva às diferenças.

Esse trabalho passa pela insistência de costurar e remendar, a cada dia, a cada vez, a cada um.  Pois, sem essa sustentação exigente e desejante, a Rede se rompe. E, quando uma Rede se rompe, o sujeito despenca no buraco que ali se abre.