Imagem: filme de Chris Marker
Teimam em morrer, apesar de tudo
por Julia Ferry
‘algumas flores teimam em viver
apesar do peso
apesar da morte
apesar de algumas
que teimam em morrer
apesar de tudo’
Alice Ruiz
Entre as experiências mais impactantes e disruptivas na vida, certamente está a
perda expressa na sua radicalidade, os efeitos da dor e a dificuldade de realizar um luto.
Freud1 conceituou o processo do luto como uma implicação que admite a perda em suas
diversas possibilidades, seja de uma pessoa, relação, sonho e até mesmo de uma fantasia.
Uma vida é um encadeamento de perdas e um exercício infinito de enlutá-las. No entanto,
se a perda é inevitável e incontornável, não são coincidentes as possibilidades de
realização do seu luto. Isso tanto porque este é um processo doloroso e indeterminado que
gera resistências e negações, como também por ser desigual na sua distribuição social e
pública. Há vidas não passíveis de serem enlutadas, como colocou Judith Butler2.
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Escrevo este texto no dia 29 de outubro de 2020. Não sei ainda o que ele se tornará,
se será publicável ou não. Sei que esta data antecede o Dia de Finados, feriado que cairá
na próxima segunda-feira, dia 2 de novembro. Fico pensando que este não será Dia de
Finados como foram os outros. Fico pensando como ele será vivido. Certamente os jornais
farão menções sobre o número atualizado das mortes ocasionadas pela Covid-19. O gráfico
aflitivo que acompanhamos todos os dias registrará algum número que tentamos tornar
previsível.
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Caminho pela Rua da Consolação na extensão do muro do cemitério. O maior da
cidade. O maior território de mortos está localizado no coração da cidade. Lembro de uma
vez que, dentro de um táxi, eu passava pela mesma rua. O taxista me falou com indignação
que não entendia como um cemitério poderia ocupar uma área tão imensa e disputada. Se
os espaços centrais são tão valorizados, destiná-los aos mortos não tinha sentido algum.
Ele mesmo não queria um túmulo, preferia ser cremado, e me perguntou qual seria o
destino do meu corpo quando eu morresse. Eu não soube responder.
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Fui pesquisar sobre o Cemitério da Consolação. Em um google rápido, encontrei
uma reportagem de 2015 no site do G13 que informou que é o cemitério com maior número
de túmulos de artistas e escritores brasileiros. Estão entre eles, Mário de Andrade, Tarsila
do Amaral e Monteiro Lobato. Outra surpresa: anteriormente à pandemia havia visitas
guiadas duas vezes na semana. Não sei se para turistas ou residentes. Procurei não saber
mais, quis manter essa dúvida.
Pesquisei “Ir ao cemitério” no google. Encontrei uma reportagem4 de 23 de março de
2020: “Ameaça de contaminação pelo coronavírus deixa os cemitérios de São Paulo
vazios”. O médico entrevistado diz que o momento exige uma “nova liturgia” na relação com
a morte. “Resgate os bons momentos que foram vivenciados em vida. É a troca do
velamento do corpo morto pelas lembranças”, ele diz. Os velórios foram limitados à duração
de uma hora, com limitação máxima para dez pessoas: “lembre-se que há um trio proibido
hoje em dia: beijo, abraço e aperto de mão”, orienta um outro biomédico entrevistado.
Lamentei por nunca ter realizado uma visita guiada, ou mesmo sozinha, no
Cemitério da Consolação. Me dei conta de que a única vez que fui a um cemitério que não
fosse por uma perda que vivi, foi em Paris, no cemitério de Montparnasse onde está o
túmulo da Simone de Beauvoir. Encontrei uma série de bilhetes, muitos deles diziam
“obrigada”, em línguas diversas. Grande parte deles estava escrito no bilhete do metrô.
Imagino que tenham sido os bilhetes usados para chegar até lá. O que possibilitou o trajeto
foi deixado ali mesmo sob a escrita de uma homenagem.
É uma tradição japonesa levar comida para os mortos. Minha avó leva sushis,
sempre em pratos descartáveis, porque “não se pode trazer de volta nada do que levamos
para os nossos mortos”.
Amo os sushis da minha avó. Posso passar dias comendo sem enjoar. Sempre que
os vejo naqueles pratos descartáveis, sendo colocados nos túmulos de pessoas que eu
amo, eles se tornam excepcionalmente indigestos. Diante de uma perda inconsolável, o
prazer da oralidade parece mesquinho ou até mesmo impossível.
Em Luto e Melancolia, Freud descreve o luto como um trabalho de elaboração
psíquica. Esse processo envolveria um deslocamento libidinal, no qual os sujeitos se
implicariam em deslocar a libido anteriormente investida no objeto, que foi perdido, para
reinvesti-la em outros objetos possíveis. Isso se realizaria pelas vias da identificação com
algum traço deste que se perdeu, incorporando-o em si mesmo. É poder fazer viver o outro
em você. Há então três processos mobilizadores: identificação, incorporação e substituição.
O luto freudiano é, em alguma medida, um luto etapista, finito e totêmico, como argumentou
Christian Dunker5. Elaborar uma perda envolveria engolir o outro, engordar-se deste outro.
Ganhar um traço. Tornar-se maior.
Luto como “ato gracioso da perda de uma pequena parte de si”
Não possuímos a dor, ela quem nos possui
Georges Didi-Huberman
Se uma pessoa é infinita, é por sua perda deixar traços incontáveis que atravessam
a vida daqueles que ficam. O que gera um complexo tenso e doloroso: como lidar, na minha
finitude, com a sua falta que se faz inesgotável?
O mistério ocasionado por uma ausência interrompe radicalmente o sujeito,
causando uma fratura que se estende entre o outro e o próprio eu. Não só o outro é
perdido, mas o próprio eu é abalado. O que se abre como questão: o que sou eu agora sem
você?
Em uma contraposição à conceituação freudiana do luto, Jacques Derrida6, filósofo
francês, aponta que a ausência de uma pessoa é inassimilável, portanto, impossível de ser
incorporada pelas vias da identificação. Esse gesto, para o autor, seria narcísico e violento,
pois implicaria em destituir o Outro no que o torna singularmente único, que é a sua
diferença, a sua alteridade. Jean Allouch7, psicanalista lacaniano, em “Erótica do Luto”
dialoga com Freud sobre a impossibilidade de substituir uma pessoa, em que a sua perda
implicaria ao enlutado não movimentar-se em direção a um fortalecimento do eu, mas à
renúncia de uma pequena parte de si mesmo, ao que esse processo resultaria não um eu
mais consolidado e resistente, mas transformado pela despossessão da sua perda.
Judith Butler8, filósofa norte-americana analisa o luto como experiência universal,
que associa o que é vivido no mais íntimo e singular e também é senso e condição da
coletividade. Essa conjunção além de demonstrar a precariedade que nos constitui, visto
que todos perderemos alguém e seremos perdidos por outras pessoas, também aponta
para os laços substancialmente relacionais que nos envolvem. Assim, a filósofa atenta para
a dimensão essencialmente política do luto, que antes de ser tomada como experiência
isolada, fornece um paradigma de comunidade política de ordem complexa.
No entanto, embora sejamos todos precários no que envolve a nossa condição
inevitável de perder e sermos perdidos, nem todas as vidas são igualmente passíveis de
serem enlutadas. A distribuição desigual do luto público aponta para as condições de
violência que constituem e organizam as relações sociais.
Butler indica a necessidade de se construir uma política baseada no luto como
recurso primordial da vida social. Construir laços sociais a partir do que não temos é
horizontalizar uma política que tenha na sua sustentação a nossa precariedade constitutiva,
o que implicaria não só em um respeito e memória pelos mortos, mas numa abertura para
novas possibilidades de considerar e sensibilizar-se pelas vidas. O luto implica o sujeito em
uma experiência necessariamente transformadora, que demonstra na sua radicalidade
dolorosa, a destituição do outro e de si. De algum modo é possível interpretar que a
reivindicação butleriana do luto coloca o sujeito psicanalítico como operador da ética e da
política. O enlutado é, na sua maneira dolorosa e radical, o sujeito em disposição analítica,
uma vez que encontra-se aberto e indeterminado pelo seu predicado e não orientado pela
sua posse.
Essa questão apontada por Butler se torna ainda mais contundente revisada em um
momento como este que estamos vivendo. A impossibilidade de velar as vidas perdidas
somada a um projeto político genocida e suicidário, parecem demonstrar não só o descaso
com algumas mortes, mas também a violência em que são enquadradas no interior do
capitalismo neoliberal alguns conjuntos de vidas.
Penso nos corpos enterrados entre as sobras imobiliárias da cidade, onde convivem
tanto as pessoas que eu amo e me dói infinitamente as suas ausências, como as figuras
públicas, artistas admiráveis cujas mortes são compartilhadas e homenageadas em
espaços inumeráveis, aquelas que nunca saberemos quem foram, que suas perdas não
foram passíveis de serem veladas, consideradas ou mesmo contabilizadas. O que a
reivindicatória política do luto ocasionaria para o lugar destinado a cada uma dessas
mortes? De que maneira a inclusão da noção das perdas como paradigma da ética e da
política transformaria – em nós vivos, indeterminados e despossuídos de nós mesmos –
nossas sensibilidades?
—
1 SIGMUND, Freud. Luto e Melancolia. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2011.
2 BUTLER, Judith; LIEBER, Andreas. Vida precária-os poderes do luto e da violência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2019.
3 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/11/cemiterios-de-sao-paulo-reunem-tumulos-de-artistas-e
-famosos.html#:~:text=S%C3%B3%20no%20Cemit%C3%A9rio%20da%20Consola%C3%A7%C3%A
3o,L%C3%ADbero%20Badar%C3%B3%20e%20Monteiro%20Lobato.
4 https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/ameaca-de-contaminacao-pelo-coronavirusdeixa-os-cemiterios-de-sp-vazios.shtml
5 DUNKER, Christian Ingo Lenz. Teoria do Luto em Psicanálise. Revista PsicoFAE: Pluralidades
em Saúde Mental, v. 8, n. 2, p. 28-42, 2019.
6 DERRIDA, J. – Já, ou le faux-bond..In: Points de suspension- entretiens. Paris: Galilée, 1992, p.54,
doravante referido como J(PS)
7 ALOUCH, J. Erótica do Luto em temos de morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
8 Ibidem 2