É no mínimo constrangedor assistir o governo brasileiro usar, em pronunciamentos à nação e em propagandas institucionais, a linguagem e a estética do Terceiro Reich. Entretanto, quando refletimos sobre o papel dessas modalidades de comunicação na invenção do extermínio de judeus, homossexuais, ciganos e doentes mentais, durante a Segunda Guerra Mundial, não é mais possível negar que, mesmo em circunstâncias históricas tão diversas e muito longe de um possível ressurgir do nazismo, o bolsonarismo se inspira no idioma e na estética do regime político que desembocou na barbárie. Diante dessa percepção, passamos, da sensação de constrangimento frente daquilo que envergonha, ao sentimento inconfundível da angústia, sinal que remete à uma situação traumática na qual o perigo externo e o perigo interno, o perigo real e a reinvindicação pulsional convergem (Freud, 1926, p. 156-157).
Talvez por isso mesmo a angústia, o afeto que não engana, seja o sinal mais preciso para o psicanalista convergir sua escuta em direção ao momento político traumático que o Brasil atravessa. Pensar as exigências próprias da dimensão psíquica no campo da política é um dos derivados do princípio freudiano segundo o qual, aquilo que é da ordem da psicologia individual é simultaneamente da ordem da psicologia social (Freud, 1921); princípio esse que Lacan retoma para introduzir os termos sujeito e Outro, articulando com precisão o que designou de transindividualidade primordial do inconsciente. A originalidade da leitura de Lacan reforça a verdade do destino que Freud reservara a seus herdeiros: agregar, à prática clínica do um-a-um, a função de crítico da cultura que testemunha.
Isso posto, passemos a primeira parte do título desse ensaio: Da linguagem do Terceiro Reich.
Ninguém melhor do que o filólogo Victor Klemperer pensou os porões do processo de implementação da nova língua que levou à nazificação da sociedade alemã. A leitura de seu livro LTI – a Linguagem do Terceiro Reich (2009) ilumina com cores fortes o modo como a linguagem se tornou um instrumento de manipulação e aliciamento do povo alemão aos valores e visões de mundo ultra-nacionalistas e xenofóbicas, todas elas condizente com a ideologia nazista: o racismo. O livro é um testemunho da maneira pela qual os ideólogos do Terceiro Reich desenvolveram um sistema capaz de reduzir a língua alemã a um dialeto empobrecido, a saber: simplificação das estruturas sintáticas, corrupção do sentido das palavras, confusão de substantivos e adjetivos, etc. Como complemento, criaram siglas, emblemas, “palavras de ordens”, palavras que condensam em si toda a ideologia, pela repetição mecânica de milhares de vezes até se “infiltrarem na carne e no sangue das massas” (Kempler, p.55).
A adulteração da linguagem talvez tenha sido a peça mais importante na formatação da identidade alemã, de acordo com o mito nazista do “sangue” e do “solo” e na consequente exclusão do Outro perpetrada para garanti-la. Em outros termos, a linguagem do Terceiro Reich forneceu um sentido prático ao mito, base de identificação política para os que se creem idênticos e segregação dos que não eram espelhos, o estrangeiro. Ou seja, a doutrina nazista da raça, do sangue e da terra designou os arianos de “raça pura” e ao mesmo tempo, em conluio com a ciência, atribuiu ao Outro a degenerescência racial. Por exemplo: foi preciso perverter o significante judeu, degradando-o a tal ponto que o Judeu foi reduzido a um vírus portador de infecção. Tal é a razão pela qual creio-me autorizada a dizer que a linguagem como instrumento de dominação política, promoveu e avalizou a Solução Final: o extermínio do Judeu.
O Terceiro Reich criou um idioma pobre e um discurso extremamente monótono, mas calculadamente exacerbado, de modo a atingir as massas e claro, fascinar e doutrinar o sujeito. Em termos psicanalíticos, é possível sustentar que a manipulação dos significantes teve a função de capturar, dominar o sujeito e impor a ideologia; até mesmo porque a psicanálise advoga que a política sempre se esforça em forjar um programa para oferecer uma identidade ideológica, lá onde o sujeito se depara em falta. Entretanto, o programa político do nazismo foi mais além da diligência de manipular os significantes mestres, ao recorrer à prática de instalar o estado de isolamentoe clausura barrando a alteridade da linguagem. O importante aqui é destacar que, na falta do Outro, os nazifascistas filiados ao Partido Nacional Socialista Alemão impuseram o “idioma” da barbárie.
É possível relacionar o empreendimento nazista de adulterar, corromper a linguagem/língua ao que George Orwell escreveu no livro 1984. O escritor descreve um sistema linguístico criado, a partir da destruição das línguas existentes, para impedir a emergência de opiniões contrárias ao regime político totalitário. A novalingua orwelliana, o idioma fictício criado por um suposto governo hiperautoritário que tinha como objetivo restringir reflexões críticas e pensamentos. Embora tenha escrito o romance no pós-guerra, o que evidentemente nos induz a associá-lo à catástrofe que o mundo havia acabado de viver, o autor descreve um cenário profético sobre o avanço tecnológico que estava por vir e o consequente uso que o poder teria sobre ele: servir à vigilância governamental, à institucionalização da mentira e à manipulação da história.
A distopia de Orwell nos traz de volta à LTI, Lingua Terti Imperii, uma linguagem de uma fé exacerbada, no dizer de Phillippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy. (2002, p. 54). Uma estética inflamada para mover as massas, aliada ao uso da violência do Estado. É o que nos transmite Peter Cohen em “Arquitetura da destruição”. A estética nazista foi sendo construída obsessiva e milimetricamente de modo a afetar intensamente o povo e promover à identificação ais ideais do Terceiro Reich: a exatidão dos “passos de ganso” das tropas marchando ao som do baquete do tambor e empunhando as suásticas nas bandeiras do Partido, testemunham no filme o alcance da estética da morte e destruição do Estado totalitário alemão.
Pois bem, talvez o mais conhecido dos slogans nazistas seja a célebre primeira estrofe de uma canção nacionalista “Alemanha acima de tudo”, composta por Henrich Hoffman no final do século 19, em homenagem à urgência da unificação da Alemanha. Hitler, que tinha um grande apreço por ela e culto à estética totalitária, exigiu que na abertura dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, a obra de Hoffman fosse tocada. Na ocasião, acompanhado por um séquito de colaboradores, o Führer adentrou no Estádio Olímpico de Berlim ao som da canção coreografada pelos movimentos da saudação nazista. A estética militar caminhava lado a lado da nova língua. Hitler levantava o braço direito e gritava – “Alemanha” – e o povo contagiado respondia: “Acima de tudo” -.
Aos poucos, a ideologia da raça foi destruindo os laços sociais na Alemanha dos anos 30. Em contrapartida, criou-se a massa artificial portadora de uma marca essencialista e etnocêntrica – a identidade alemã. É conhecido o fato de que Freud, num texto premonitório ao que viria acontecer a partir da ascensão de Hitler ao poder, Psicologia das Massas e análise do Eu (1921/2014), chamou atenção para o futuro desse conjunto de indivíduos, a massa, cuja identidade imaginária exigia servidão de todos ao Fuhrer, o eu ideal de todos. O nacionalismo alemão se consolidou pela imposição de ações políticas que incitavam a massa a destruir o outro, portador de uma pequena diferença. Esse “inimigo objetivo” do Estado, no dizer de Hannah Arendt, foi a base do da nova religião pós-morte de Deus que se consagrou às custas do ódio e intolerância à Alteridade.
O discurso de Hitler, “deus da raça pura”, funcionou, em termos psicanalíticos, como o discurso do Senhor promovendo a identidade do povo e a violência contra os estrangeiros que deveriam estar isolados, esterilizados e finalmente exterminados da sociedade alemã. Abriu-se, então, um paradigma incontornável: a tirania em nome da proteção ao desamparo do povo. Mussolini, que recebeu ajuda de Hitler a partir de 1943, convenceu os italianos que iria protegê-los da ameaça comunista por meios de grandes reformas sociais. (Eco, 1918, 30-31). No regime nazista e no fascismo de Mussolini, o que se encontrava em jogo não era o pai morto, que funda a origem da função do pai em seu assassinato, conforme subscreve o mito freudiano de Totem e Tabu, e sim a apresentação do pai tirânico e onipotente que exige, em nome do amor, a fidelidade e obediência de todos.
Creio que bastam esses poucos parágrafos para o leitor se aperceber que a fonte de inspiração do bolsonarismo não é propriamente a ideologia nazista, mas claramente a linguagem do Terceiro Reich que serviu de garantia para Hitler ocupar o locus do poder. Desde os tempos da campanha eleitoral em 2018, expressões linguísticas, diretamente traduzidas do alemão, paráfrases que mantém a essência em termos temáticos nazis somadas à estética destrutiva, racista e militarista do Terceiro Reich animam o discurso de Jair Bolsonaro. Ou seja, o mimetismo do presidente à linguagem nazista que levou a des-democratização à Alemanha de Hitler, visa assegurar seu projeto político de ultra-direita, domine e imponha sua ideologia ao povo brasileiro. Portanto, se não é possível qualificar o presidente brasileiro de nazista ou de fascista, nada impede de encaixá-lo na categoria de tirano. Um tirano que à semelhança de outros líderes atuais, precisa apenas de um alvo para incitar o ódio do povo ao Outro, exclusivamente para aumentar e garantir o poder.
É disso que se trata na sua escolha de parafrasear o jargão nazista “Alemanha acima de tudo”; uma forma de propulsar sua candidatura e, mais tarde, seu governo. O slogan “Brasil acima de tudo” do então candidato, era um chamado ao nacionalismo e à realização de seu projeto populista. Em português, à palavra de ordem “Brasil acima de tudo” foi anexada a expressão “Deus acima de todos”. Acréscimo perfeitamente compreensível em função da ligação do futuro governo com o segmento evangélico. De todas as formas, Bolsonaro encontrou na legenda “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos” a garantia de sua eleição. E isso, hoje, nos assusta ao nos darmos conta, aposteriori, que essa legenda prenunciava o que hoje estamos vivendo: uma nova forma de governar apenas para seguidores do regime ideológico, já que opositores constituem bando de “inimigos” da pátria que devem ser banidos do convívio entre os idênticos.
Mais assustador, ainda, é o fato de o futuro presidente ter usado a retórica própria ao nazismo, o racismo, para angariar votos. Basta lembrar do pronunciamento de Bolsonaro no Club Hebraica, ocasião em que comparou um “integrante de comunidade quilombola a um animal que tem sua massa corporal medida através de arrobas” e lembrou que durante mais de três séculos e meio, pessoas negras foram legalmente comercializadas como escravas no Brasil, comercializadas inclusive em função da massa corporal que ostentavam. E de quebra Bolsonaro anunciou em seguida, a decisão de, se eleito, expulsar os índios amazonenses do habitat milenar e entregá-lo ao capitalismo que impera no atual estágio da civilização. Promessa que encerra, em si mesma, a ideia do Estado de que é possível roubar o direito da coletividade indígena e da coletividade quilombola de permanecerem em seus territórios. Algo bastante semelhante ao ocorrido no Estado Nazista, quando da apropriação de bens culturais e propriedades dos judeus.
Tão chocante quanto as declarações racistas foi a escolha de Bolsonaro em fazê-las na casa de um povo que sofreu o genocídio programado pelo Terceiro Reich. O episódio que angariou risadas e aplausos do público presente, em sua maioria judeus, dá provas, pelo menos para nós psicanalistas, de que o “narcisismo das pequenas diferenças” pode chegar ao paroxismo de apagar a memória histórica dos que ali estavam presentes. Qualquer insuflação narcísica do eu ou de um grupo provoca o desconhecimento da Alteridade.
Historicamente, as eleições de 2018 legitimaram um governo que, desde o início, mostrou-se antidemocrata, marcadamente populista e nacionalista. Antes de desenvolver melhor esse tópico, gostaria de registrar outros episódios do governo de Bolsonaro diretamente ligados à identificação mimética à linguagem e à estética nazifascista. Em janeiro de 2020, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim parafraseou num vídeo institucional o Ministro da Propaganda da Alemanha, Joseph Goebbels, ao som da estética wagneriana tão apreciada por esse ministro e seu chefe imediato, Adolpho Hitler. Apesar da demissão do secretário, não se pode ser ingênuo e acreditar que o episódio tenha sido isolado do projeto que o governo atual reservou a todo tipo de arte que seu núcleo ideológico identifica como imprópria. O discurso de Alvim, um dos maiores militantes da atual “guerra cultural” bolsonarista, só confirma que ícones do nazi-fascismo alimentam o sintoma social, o discurso de ódio, que atinge frontalmente a arte e o pensamento brasileiro.
Continuando o circuito de horror, recentemente o chanceler Ernesto Araújo comparou a medida de isolamento social para combater a pandemia de Covid-19, aos campos de extermínios nos quais foram assassinados milhares de pessoas em função de suas etnias, escolhas sexuais, escolhas ideológicas etc. A comparação sem pé nem cabeça do chanceler desvela a intenção do governo de confundir o receptor da mensagem, o povo brasileiro. A ação de desmerecer e tornar inócua as recomendações de isolamento da OMS e de outras entidades científicas, opera como um aparelho de desidratação da mensagem de proteção contra a disseminação do vírus.
Na cruzada bolsonarista, o discurso de Alvim e o discurso de Araújo não estão sozinhos: a Secretaria de Comunicação recentemente publicou um vídeo, compartilhado pelo Presidente, com a tradução da frase inscrita no portão da entrada de Auschwitz: “Arbeit macht frei”; “O trabalho liberta”. O secretário Fábio Warjngarten reagiu à associação que a Imprensa e Entidades públicas fizeram entre o vídeo e a lembrança dos campo de extermínio, alegando sua impropriedade pelo fato dele próprio ser um judeu. Uma alegação imprópria e obscena. O fato do secretário ter evocado suas origens para justificar o uso da frase – “O trabalho liberta” -, por si só desvela que é como cidadão que se quer acima de qualquer suspeita que subscreve a frase com o qual os carrascos nazistas encobriam o que verdadeiramente acontecia nos campos de extermínio.
Enfim, a cada dia é mais evidente o rumo da política brasileira a passos largos em direção ao fascismo. Mas tal escolha não é apanágio do Brasil. Na atualidade, conforme a análise do filósofo Umberto Eco (2008) o estado de ânimo de muitas das “democracias” espalhadas pelo planeta é o “fascismo eterno”. “Ur-Fascismo”, noção cunhada pelo filósofo para mostrar a onipresença de traços fascistas na cultura, revela o fato de que se o fascismo foi extinto no final da Segunda Guerra Mundial, por outro lado, muitas de suas características persistem, ainda que de forma independente. A prova mais cabal dessa tese são as declarações e atos perpetrados por líderes hiper-nacionalistas, entre eles o Presidente da Hungria, Víctor Orban, o Primeiro Ministro da Polônia Mateusz Morawieck, e o Presidente da Filipinas, Rodrigo Duarte, que ameaçam dissolver o Estado Democrático de Direito. Líderes que apontam para a possibilidade efetiva do iminente retorno do cadáver insepulto do pai da horda, como aconteceu durante a vigência do fascismo, do nazismo e do stalinismo.
Uma outra característica do Ur-fascismo é o culto à tradição. Um traço mais velho do que o próprio fascismo pois, segundo Eco, nasceu da reação ao racionalismo grego clássico em plena idade helenística e que vem sendo reatualizado em nossa pós-modernidade. As atuais governanças de Estado com tendências fascistas usufruem intensamente da ciência moderna e da tecnologia, mas rejeitam o multiculturalismo, o avanço de costumes e o saber das ciências sociais e humanas. Sabem intensificar plataformas políticas por meio da comunicação digital e, ao mesmo tempo, responsabilizam os costumes pós-modernos pela “depravação” dos costumes e abandono dos valores tradicionais na sociedade atual.
A ascensão reacionária e conservadora das seitas neopentecostais que se espalham pelo Brasil há décadas, é o principal aliado do governo Bolsonaro em seu empenho para paralisar o avanço do saber e fomentar o tradicionalismo. Nesse sentido, obscurantismo e o anti-cientificismo do bolsonarismo prenuncia algo bastante semelhante ao que Freud intuiu às vésperas da Segunda Guerra Mundial: o retorno do obscurantismo religioso. Nessa ocasião, em conversa particular com Marie Bonaparte, Freud insistiu, diante da tentativa da princesa em convencê-lo de que o antissemitismo era apenas um mal obscurantista da Idade das Trevas, em dizer: “Espere só, veremos o terrível retorno ofensivo do [obscurantismo religioso]. Parodiando o criador da psicanálise podemos afirmar que a ofensiva obscurantista e anticientificista contra a inteligência e as universidades brasileiras do presidente Jair Bolsonaro testemunham o retorno de uma das características mais perversas do fascismo. A “Terra é plana”, ‘o aquecimento global não existe” são alguns dos enunciados que visam não apenas desqualificar e atacar o saber científico, a filosofia e as ciências humanas, mas recusá-los, isto é, desmentir e encobri-los com afirmativas tradicionalistas e religiosos.
A reação contrária à diversidade, outro traço do Ur-fascismo,toma de assalto a realidade brasileira. Uma característica típica de regimes que, segundo Eco, perpetram uma intensa oposição à análise crítica, aos paradoxos do mundo das ideias e ao exercício da repressão e do controle da sexualidade. Se os ideólogos do nazi-fascismo consideravam a homossexualidade como uma patologia e por conta dessa ideia chegaram a enviar milhares de mulheres e homem homossexuais às câmaras de gás, hoje, a atual ministra do ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, repudia e ataca publicamente qualquer escolha sexual que não a heterossexualidade; além de empreender uma verdadeira guerra contra os Estudos de gêneros, ignorando o que a Psicanálise e a Antropologia tem a dizer sobre. Damares propõe a supressão do sujeito do desejo, advogando a favor de códigos sexuais rígidos e hierárquicos e propondo uma possível “cura gay”. Proposta reveladora da aversão estrutural do governo bolsonarista aos diferentes registros sociais do multiculturalismo.
Chama atenção a defesa da Ministra, que é também pastora evangélica, da ideia de que a abstinência sexual seria a única medida cabível à proteção do fenômeno da gravidez precoce. Descarta qualquer tipo de educação sexual como saída para esse problema que atinge muitas adolescentes, em sua grande maioria, provenientes da camada mais pobre da população. A proposta ministerial é reinstalar na sociedade o moralismo pela via do autoritarismo: desmontar os avanços da cultura em relação ao exercício da sexualidade, pregando uma retirada mais ampla da intimidade física até a maturidade. Um moralismo por definição fascista: regular o gozo infiltrando, parodiando Kempler, na carne e no sangue do povo, uma visão de mundo repressora para melhor dominá-lo. Guardando as devidas proporções, o discurso da Ministra parece funcionar como a LTI, a língua do Terceiro Reich.
Existe mais um traço que fala, por si só, da tendência do governo ao fascismo: a implantação da mentira institucionalizada. Além das fakes News, instalou-se uma nova modalidade de corromper testemunhos do passado recente pela reescrita da história, de modo a fazê-la se encaixar perfeitamente no discurso ideológico que sustenta. É o caso da declaração de Bolsonaro, quando de sua visita ao Museu do Holocausto em Israel, de “não ter dúvidas” que o nazismo tenha sido um movimento de esquerda. Aí reside uma das chaves mais destrutivas do governo: Não se trata aqui de uma tentativa de apagar as marcas da História de maneira semelhante ao que se faz num crime onde, como indicou Freud em O homem Moisés e o monoteísmo, “a dificuldade não está na execução do ato, e sim na eliminação de seus rastros” (Moisés, 1939, p. 76). O bolsonarismo não tem a menor pretensão de “modificar a aparência” nem tampouco “colocar em outro lugar, deslocar para outra parte”, a verdade de um assassinato. O que lhe interessa é “excluir”, banir para fora dos limites do país e para todas as gerações de brasileiros, qualquer saber que implique na institucionalização do conflito com o poder.
Não é portanto casual, a batalha cultural que o Ministro Abraham Weintraub trava contra as universidades e escolas brasileiras. O saber precisa ser controlado pelo Estado pois, do contrário, as pesquisas científicas podem emitir pareceres contrários à ideologia vigente. Na mesma linha, será necessário determinar os conteúdos programáticos da área de ciências humanas e acusar os professores, sem provas concretas, tal como aconteceu no Terceiro Reich, de promover “balbúrdia”, “plantações de maconha” e “laboratórios de drogas. A paranoia instalada é justificada pelo Ministro que quer mudar as regras da República para banir do país o “paraíso esquerdista” (sic). Como nos faz conhecer Eco, para o fascista a relação com a cultura é sempre uma guerra. E nos oferece como exemplo uma declaração inflamada de Goebbels: “Toda vez que ouço falar de cultura tenho vontade de sacar minha arma” (Eco, 2018, p. 49)
Encaminho, então, o encerramento dessa pequena reflexão reiterando que o governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro encontrou na linguagem do Terceiro Reich um modelo de ação e propaganda política. E claro, isso aponta para o fato de que o fundamento de sua política comunga com o nazifascismo, a crença de que eliminando tudo aquilo que considera “perigoso” – os comunistas, a ciência e o saber das ciências humanas – garantirá o poder sobre o todo. Mas precisamos reconhecer que a linguagem e a estética bolsonarista, por mais que mimetize as ações do Terceiro Reich, se insere num contexto histórico outro, num espaço social diverso daquele dos anos trinta do Século XX, num processo civilizatório talvez mais evoluído, em muitos sentidos, embora a História já tenha cansado de mostrar que progresso não significa garantia contra a barbárie.
O que se observa, até agora, é que a sugestionabilidade do povo brasileiro às palavras de ordens e às ações incendiárias propostas pelo líder da nação é relativamente baixa. Considera-se que por mais que haja uma tentativa do governo em desmentir, e até mesmo foracluir do ensino fundamental, a história política recente do Brasil – o golpe de 1964 e do AI-5, a memória do povo brasileiro funciona, ainda, como um arquivo permanente à disposição das elaborações individuais e sociais daquele trauma coletivo. Um arquivo que impede a transformação do atual presidente em intérprete do povo e que igualmente funciona como resistência à idealização e nostalgia da ditadura militar, aos engodos da identidade nacional e à manipulação do movimento desregrado das pulsões pelo populismo.
É certo que o psicanalista não escuta o homem em massa, mas um a um (Miller, 2003). Entretanto, por estar inscrito na História, não é possível ignorar os movimentos políticos-culturais de sua época. Na atualidade, manter essa percepção em alerta, significa uma proteção à própria instituição psicanalítica: a subversão freudiana não floresce, nem jamais poderá florescer, em governos fascistas. O ódio como política fomentou a cultura de violência do século XX e torna-se cada vez mais evidente que nada o impede de dar asas a política de nosso tempo. Trata-se do poder do Estado em manejar o dispositivo de ódio ao outro, em nome da in-diferença, entre os seus cidadãos. Não podemos esquecer da observação de Freud pouco antes de exilar-se em Londres, para escapar ao destino que o Terceiro Reich reservara aos estrangeiros. “Vivemos numa época particularmente curiosa. Descobrimos com espanto que o progresso selou uma aliança com a barbárie” (Freud (1939/2014, p.89). Nada mais atual!
Bibliografia.
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Eco, Humberto. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Editora Record. 2018
Kempler, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
Freud, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Rio de Janeiro: L&PM, 2014. (Originalmente publicado em 1921).
Freud, Sigmund. “Inibição, Sintoma e Angústia”. In: Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu Editores, vol.XX. 1976. (Originalmente publicado em 1926)
Freud, Sigmund. O homem Moisés e a religião monoteísta. Rio de Janeiro: L &PM, 2014. (Originalmente publicado em 1939).
Lacoue-Labarthe, Philippe & Nancy, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo: Iluminuras, 2002.
Lacan, Jacques. O seminário, a angústia, livro 10 (1963/1964). Rio de Janeiro, Zahar. 2005. (Originalmente publicado em 2004)
Miller, Jacques-Alain, Lacan et La Politique. “Entrevista”Presses Universitaires de France. “Cités”. 2003/204 n. 16.
Disponível no site https://www.cairn.info/revue-cites-2003-4-page-105.htm
Orwell, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.