Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.
Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.
Agostinho Neto (1922-1979)
São muitas notícias todos os dias. O dia vai se abrindo aos poucos e vamos fazendo nossas escolhas de leitura. Estamos com muitos nomes na cabeça: João Pedro, Miguel Otavio da Silva, George Floyd, Evaldo dos Santos, Luciano Macedo… Resolvi saber um pouco mais sobre os 35 tiros que mataram a costureira Dorildes Laurindo e feriu o angolano Gilberto Almeida aqui em Gravataí, no RS.
Gilberto é angolano, tem 26 anos, é técnico em radiologia e vive em Goiás. Vem visitar a amiga no Rio Grande do Sul e vão fazer um passeio no litoral. No retorno, em 17 de maio, pegam um carro de um aplicativo de carona. O motorista passa um sinal vermelho chamando a atenção da policia que sai em perseguição. Desespero dos passageiros que não sabiam o que estava acontecendo. Depois de um tempo o motorista para o carro e sai correndo. A polícia chega com os dois passageiros ainda dentro do carro. Ao descerem do carro são disparados 35 tiros, segundo o próprio comandante da 17º BM.
Dorildes morre dias depois, Gilberto foi baleado e passa uma cirurgia no joelho e, mesmo alegando inocência, fica 12 (1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1+1) na Penitenciária Estadual de Canoas. Leio comovido e indignado o relato dele sobre estes acontecimentos. Ele fala em detalhes deste tempo de prisão e dos planos para ir a Portugal onde foi aprovado em um mestrado. Dorildes está morta. Não há desculpas que recuperem esta vida interrompida brutalmente. Uma história de amizade, de vida, de litoral, de mar, de projetos com um fim trágico diante de mais uma violência com traços de racismo. Reproduzo aqui um pequeno trecho da entrevista de Gilberto ao repórter Carlos Rollsing para que estas palavras fiquem ecoando em alguns de nós, e o poema do angolano Agostinho Neto, como um gesto de solidariedade com Gilberto Almeida, que vai seguir sua vida com este trauma no espírito. E alguns de nós também…
Repórter – Houve tempo para que vocês falassem algo aos policiais?
Gilberto – Eles atiraram. Quando vi que estava ferido, já caído, comecei a gritar que era inocente, estrangeiro, que não havia feito nada errado. Eles diziam: “TU VAI SANGRAR ATÉ MORRER”.
Repórter – Depois de baleado, eles gritaram essas coisas?
Gilberto – Sim, depois de ferido. Me algemaram, deram chute na cara. E diziam que iria sangrar até morrer.
(Na imagem Gilberto Almeida , técnico em radiologia)