O Sal da Memória – Por Edson Luiz André de Sousa

 

Relendo algumas anotações antigas dos anos que morei em Paris encontro, em um dos cadernos, um longo registro do qual compartilho esta breve passagem:

…Tristes múmias do século
Dormindo diante do mar do Chile
O silêncio da morte envolta em sal,
Uma espera de 17 anos
Neste buraco de tempo …

Lembro que estava na Biblioteca Nacional na Rue Richelieu quando em um intervalo, ao deixar a sala de leitura, leio em um jornal a notícia sobre os corpos de presos políticos encontrados em Pisagua, no norte do Chile. Isto foi em junho de 1990. Naquele tempo não tínhamos acesso a internet como temos hoje e as notícias chegavam de forma mais esparsa.

Foi impossível continuar o trabalho naquela tarde. Em Pisagua, na região de Tarapacá, foi encontrado, em 11 de junho de 1990, uma fossa com vinte corpos, assassinados em 1973. Nesta região desértica a terra é de alta salinidade, o que fez com o que os corpos estivessem conservados, sendo possível o reconhecimento facial, mesmo 17 anos depois de enterrados.

 Este nome, PISAGUA, ficou desde então gravado em minha memória. Hoje, 30 anos depois, retorno a estas anotações pois estamos diante de uma história ainda viva. Lembro-me de um relato de um filho reconhecendo seu pai e que assustadoramente falava da sensação de ver seu pai com a imagem congelada em sua juventude.
A imagem do sal conservando o traço de uma história, a genealogia de um crime convocando nosso dever de memória diante destas violências. O que hoje vivemos em nosso país é, em parte, fruto de nossa negligência com tantas histórias de violências e a constatação da falta de uma política de memória no Brasil. Como entender que um torturador pode ser lembrado por um presidente da república como herói nacional?

Fui ler um pouco mais sobre o que foi o inferno de Pisagua. Pequeno povoado diante do Pacífico, cercado de montanhas e isolado no meio de 80 quilômetros de deserto. Este local já tinha funcionado como prisão e campo de concentração nos governos de González Videla y Carlos Ibáñez. O campo foi reaberto no dia seguinte ao golpe militar no Chile, em 12 de setembro de 1973. Estima-se que entre 1.500 a 2.500 pessoas passaram por este campo de prisioneiros entre 1973 e 1974.

Li o relato do médico Alberto Newmann, também prisioneiro em Pisagua, falando que os vinte corpos encontrados estavam embrulhados em sacos de batatas, alguns com os pés e as mãos amarrados e com vendas nos olhos, outros com as mãos no bolso.
A terra gritando pelo reconhecimento de seus mortos, a história que estava ali a espera. Leio alguns relatos de famílias que durante 17 anos buscavam alguma noticia de seus desaparecidos. Uma destas histórias comoventes relata em detalhes a procura de Juan Calderón. No final deste texto coloco o link de um artigo da historiadora Romané Sepúlveda intitulado “Itinerário da ausência. A cova clandestina em Pisagua”, para quem quiser saber mais. Todo este trabalho de reconstrução desta história foi possível pela Comissão Nacional da Verdade e reconciliação constituído no Chile em 1990, no governo de Patricio Aylwin. Foi graças ao trabalho desta comissão que milhares de pessoas se autorizaram pela primeira vez e de forma oficial a dar seu testemunho sobre mortos e desaparecidos. Tivemos aqui no Brasil o importante trabalho da Comissão Nacional da Verdade, mas que ainda precisa ser mais conhecido, revisitado, ampliado. Não iremos muito adiante se não conhecermos um pouco mais de nossa história.

Hoje, em Pisagua, encontramos um memorial contando parte desta história. Um memorial é como este sal que não nos deixa esquecer, que conserva o que alguns querem enterrar. Para abrir futuro precisamos sim desenterrar, ler estas cinzas, buscar estes vestígios, estas ruínas de tantas histórias de violências. Nosso país carece de memoriais. Por que ainda não temos um Memorial na Usina de Cambahyba no Rio de Janeiro? Coincidentemente foi também em 1990 que foi descoberto valas clandestinas no cemitério de Perus em São Paulo, onde muitos presos políticos foram clandestinamente enterrados. A história é responsabilidade de todos. O que vivemos hoje no Brasil é consequência de muitos apagamentos e esquecimentos.

Hoje, nosso sal são nossas palavras, como estas de Mario Benedetti no poema “ No me pongas la capucha”. ( Não me ponha o capuz)

Te miro aunque no es lo mismo,
te miro aunque no te escupa.
Mi memoria es una lupa
que repasa tu sadismo.

Mirá que sigue la lucha
y sigue el pueblo despierto.
No te suplico. Te advierto:
no me pongas la capucha.

Artigo: Itinerário da ausência – A cova clandestina em Pisagua 1973-1990

https://www.google.com/url…