No Brasil de hoje, mas certamente em muitas outras paisagens de nosso mundo, a pandemia é um elemento a mais na direção de uma atmosfera distópica. Na cena da escuta clínica, em conversas com amigos ou nas redes sociais, me chamam atenção recorrentes comentários sobre a estranha sensação de estarmos vivendo algo da ordem de uma ficção científica.
Os filmes Sci-Fi, principalmente aqueles sobre desastres coletivos, como muitos têm lembrado, começam com as autoridades governamentais ignorando os cientistas. No entanto, não se trata apenas de negacionismo (aliás, esperado em momentos de crise), mas se instaura um obscurantismo como método no discurso político. Prolifera nesse solo obscurantista, uma antipolítica e até mesmo uma necropolítica. Nesses tempos sombrios, vivemos um peculiar retorno à Idade das Trevas que visa, paradoxalmente, o avanço do neoliberalismo.
Diante desse cenário, o que é ainda possível sonhar? Quais serão os destinos do laço social no mundo pós-pandêmico? Seriam esses os últimos esforços desesperados do neoliberalismo? Ou, ao avesso, ocorrerá um empuxo ao totalitarismo e ao monitoramento social pela via da tecnologia? Deste modo, abrindo trilhas para radicalização máxima da lógica neoliberal?
Responder com previsões de forma apressada, em geral, conduz ao reducionismo. Contudo, é preciso começar a elaborar caminhos para possíveis respostas éticas, desde o momento em que essas questões estão colocadas, por assim dizer, na mesa. Nesse esforço de dar alguns contornos aos problemas em jogo, recorro, então, à literatura das distopias, particularmente, as de ficção científica.
A partir disso, recordo de uma imagem, a qual vi em 2018 na internet: uma espécie de “nó distópico”, enlaçando 1984 de George Orwell; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; Farenheit 451, de Ray Bradbury e, o Conto da Aia[1], de Margaret Atwood. No centro, o sujeito (produzido ou acossado por esse nó?).
A despeito das propriedades e registros desse nó, avancemos em outras direções. Primeira destas, um comentário de Bradbury sobre seu trabalho “a ficção científica é uma ótima maneira de fingir que está falando do futuro quando, na realidade, está atacando o passado recente e o presente”. E, por sua vez, a ideia de que a verdade tem estrutura de ficção, conforme propõe Lacan.
Arriscando um passo em companhia de Bradbury, levanto a hipótese de que por esse meio, a ficção científica, é possível atacar também o futuro. Isto no sentido de uma memória do futuro, enquanto forma de antecipação (contundente ao compararmos seu texto ao obscurantismo à brasileira, com “livros com muitas coisas escritas” ou o trágico incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro), mas também e necessariamente, como invenção de um futuro ao abrir perspectivas inesperadas. Essa invenção de um futuro possível é uma resposta ao impossível do presente, ou seja, sua reinvenção.
Viagem à Lua, rodado em 1902 por Georges Melies, nos primórdios do cinema, esboça formas para um sonho ancestral da humanidade. Não por acaso, na aurora do século XX, esse sonho vai ganhando força até se tornar um acontecimento em 1969. Um pouco antes, em 1968, foram outras revoluções que alçaram voo na face terrestre.
O ponto em questão é que aquilo que a ciência realiza, um dia foi um devaneio ou sonho absurdo. Esse sonho é sonhado, comumente, primeiro no campo das artes. Nesse sentido, a literatura de ficção científica me parece ser explosiva ao fazer convergir a inventividade literária e científica. Nesse sentido, destaco dois escritores que também foram reconhecidos cientistas: Arthur Clarke e Isaac Asimov, pois tudo o que colocam em cena nos questiona em nossa humanidade e laço social.
Cena do filme 2001: uma odisseia no espaço, de S. Kubrick, 1968.
Devido à economia desse ensaio, vou citar de passagem, apenas uma obra de Clarke, 2001: uma odisseia no espaço, a qual também conhecemos pelas lentes de Stanley Kubrick. Já no capítulo de abertura, Clarke coloca-nos uma inquietação, pois os primatas, que viriam a ser a espécie humana, encontram-se, como diz, a caminho da extinção. Logo nos perguntamos: que futuro restaria para a humanidade não-nascida?
O perturbador e enigmático Monolito, o qual vemos no filme de Kubrick, intervém produzindo um desvio na morte anunciada. O Monolito faz os primatas sonharem. Pela via do sonho, a inteligência alienígena envia mensagens através das imagens oníricas. A partir de tal transmissão, se funda um esboço de memória e o uso de ferramentas. A primeira destas tecnologias é um osso, aquele que na tela vemos saltar e metamorfosear-se em um satélite.
Dentre várias questões possíveis, vale pontuar a presença misteriosa desse Outro alienígena e o sonhar enquanto humanizador, transformador da espécie. Ao longo do texto, inevitavelmente somos atingidos, porém, pela sensação de pequenez de nossa condição. Isto, particularmente, em relação ao nosso desconhecimento e “infância” (em termos da existência temporal da humanidade). Outros livros interessantes, digamos, sobre o tempo e a transitoriedade, são O fim da infância (Clarke) e O fim da eternidade (Asimov).
A ficção científica ataca nosso narcisismo constantemente ao nos retirar do centro do universo ou de nosso próprio planeta. O problema é exatamente esse “nosso planeta”, como se dele fossemos proprietários e não passageiros, nos vários sentidos do termo.
No Museu do amanhã, situado no Rio de Janeiro, me deparei com o conceito de Antropoceno. Dentre todas espécies, produzimos tantas alterações no planeta, assumimos tamanha influência em seu funcionamento, que nos colocamos no seu centro. Esta é a Era humana. No entanto, agora é preciso assumir o preço e as responsabilidades disso, justo para que possa existir um amanhã e um mundo em que efetivamente queremos viver. Se de fato desejamos um mundo mais democrático, é preciso sonhá-lo, insistentemente.
Ou seja, é preciso sonhar nosso futuro. Não por acaso, psicanalistas tem apostado em projetos de pesquisa dos sonhos que produzimos nesses tempos sombrios.
Na visita ao Museu do amanhã, encontramos um único objeto físico. No entanto, uma peça fundamental. A churinga, um artefato de madeira, longilíneo. Trata-se de uma ferramenta aborígene, de uso exclusivamente simbólico: representa a relação do passado com o futuro. Sua função é bem precisa, a continuidade do povo e de sua cultura, através de uma transmissão que, necessariamente, imagina e se implica na construção do amanhã.
Essa ferramenta simbólica, me parece, não despreza o momento presente (visto que é na presença que opera seu enlace entre passado e futuro), porém, nos indica uma saída para uma certa ditadura do “aqui e agora”, a qual pode produzir sujeitos tanto sem história quanto sem futuro. Além disso, se situarmos aí o ato de sonhar, trata-se não só de reviver aqueles desejos dos quais temos dificuldade de abrir mão, mas sonhar com aquilo que podemos desejar.
Pontuo isso, pois no discurso psicanalítico, a referência mais comum e insistente do sonhar é ao passado. De fato, enquanto ciência, em geral, somos bastante nostálgicos. Demonstramos, sem muito constrangimento, um gosto pela crise da psicanálise diante da época atual, desde o fim da primeira metade do século XX. Isto sem falar de um certo regime institucional familiarista e verticalizado. Um giro discursivo se faz necessário.
O trabalho de memória é fundamental, não há dúvidas, inclusive para que se possa vir a sonhar. No entanto, é preciso sonhar também com o futuro. Nesse sentido, os nossos sonhos de hoje, são o museu de nosso amanhã.
No que se refere às revoluções humanas, tanto políticas quanto científicas (e em suas influências recíprocas), Zizek (2012) nos indica já no título de seu livro, O ano que sonhamos perigosamente, escrito no calor da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street, dentre outros acontecimentos, que é possível sonhar perigosamente.
Esse risco é o de reavivar a imaginação política, visto que melancolizados, somos presas dóceis, conformadas[2]. Cito a esse respeito, uma passagem de Huxley no prefácio de Admirável mundo novo: “um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele que os chefes políticos de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão” (p.14).
Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles nos oferecem um estranho sonho chamado Bacurau, o qual penso ser utópico e não distópico, como acreditam alguns. A abertura do filme nos indica que a narrativa se passa “no Brasil daqui há alguns anos”, iniciando por uma estrada de caixões. Denuncia aqueles que vendem e compram vidas tidas como descartáveis. No entanto, lá se respeitam os ritos fúnebres: não só há bons coveiros em Bacurau, como há cortejo e memória. Aliás, são enfáticos ao dizer que a Igreja está fechada, mas o Museu está aberto (inclusiva aberto a novas marcas). Quem nasce em Bacurau é gente. Gente que convive na diversidade e que, se preciso for, luta por sua vida enquanto direito legítimo. Acolhem seus exilados, enterram seus mortos. Bacurau é o sonho de um laço social particular, no qual, os classicamente massacrados são os agentes da reinvenção. Bacurau é uma ave noturna.
Cena do filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019.
Referências
Asimov, I. O fim da eternidade. São Paulo: Aleph, 2007.
Atwood, M. Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.
Bradbury, R. Farenheit 451. Rio de Janeiro: Globo SA, 2018.
Clarke, A. 2001: uma odisseia no espaço. São Paulo: Aleph, 2013.
Clarke, A. O fim da infância. São Paulo: Aleph, 2010.
Huxley, A. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo AS, 2014.
Orwell, G. 1984. São Paulo: Cia das Letras: 2009.
Safatle, V. Melancolia do poder. In: Melancolia da vida cotidiana, curadoria de M. R. Kehl. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LLLxyYgWzQA acessado em 28/04/2020.
Zizek, S. O ano que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo: 2012.
Imagens:
Imagem sem título, acessada em 20/04/2020, disponível em:
https://www.tumblr.com/tagged/admiravelmundonovo
Fotografia de 2001: uma odisseia no espaço, acessada em 20/04/2020, disponível em:
http://www.collectorsroom.com.br/2016/11/pink-floyd-e-trilha-sonora-de-2001-uma.html
Fotografia de Bacurau, acessada em 20/04/2020, disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/porque-bacurau-foi-o-melhor-filme-de-2019/
Sander Machado da Silva: Psicanalista, pesquisador independente. Coorganizador dos livros Retornos do caso Dora (Artes & Ecos, 2021), Retornos do Homem dos Lobos (Sulina, 2018) e Interlocuções na fronteira entre psicanálise e arte (Artes & Ecos, 2017). Participou da tradução inédita para língua portuguesa de Sonho e mito: um estudo sobre a psicologia dos povos, de Karl Abraham (Artes & Ecos, 2020). Coorganizador do projeto Arquivos da Servidão. Membro Associado do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA). Membro da Apertura para Otro Lacan (APOLa Internacional).
[1] Dentre os livros citados, este se trata de uma distopia, mas não de uma ficção científica.
[2] A esse respeito, remeto o leitor a série Melancolia da vida cotidiana, com curadoria de Maria Rita Kehl, em especial, a discussão com Vladimir Safatle: https://www.youtube.com/watch?v=LLLxyYgWzQA