Nós: Os Bêbados, as Equilibristas e as Palavras – Por Leonardo Beni Tkacz

 

(En) lutamos com a morte de Aldir Blanc, a quem as letras encontravam um habitat acolhedor e que nos acolheu como nunca na canção “O Bêbado e a Equilibrista” em 1978 na voz vigorosa de Elis Regina – João Bosco compôs a música. Nesse período, o país vivia uma grande mobilização popular que envolvia vários segmentos da sociedade civil que clamava pela abertura política e pelo retorno dos exilados. No esteio dessa mobilização, a Lei da anistia era promulgada em 1979 e a canção seu tornou seu hino.

Aldir, tempos depois, contou que a letra nasceu de um desejo de unir dois acontecimentos: um o de homenagear Charlie Chaplin que falecera no final de 1977 – a quem cultivava um apreço especial por representar o personagem Carlitos que com humor e dor expressava as tentativas de inserções daqueles que permaneciam à margem do laço social no lugar da exclusão. O outro acontecimento foi a mobilização da sociedade civil no final dos anos de 1970.

Quanto a homenagem a Chaplin, lembrei-me de uma cena no filme “Tempos Modernos” de 1936 que talvez ilustrasse o modo pelo qual o personagem da canção de Aldir o bêbado/brasileiro se espelharia a maneira de Carlitos. Contextualizarei a cena.

O personagem é um operário de uma fábrica que se vê engolido metaforicamente pelas engrenagens do capitalismo que ressurgia no período pós – crise econômica de 1929. A voracidade com que se exigia da mão de obra, levou-o a uma internação hospitalar. Por lá ficou um tempo. Ao sair do hospital, enquanto perambulava pelas ruas, nota que uma bandeira de sinalização – aludindo à cor vermelha – caia de um caminhão em movimento. Carlitos, então, corre atrás do veículo, agitando a bandeira para devolvê-la a seus donos. De súbito, é surpreendido por uma multidão que surgia atrás dele, numa clara manifestação popular. Pouco depois, a polícia chega e reprime os manifestantes e, ainda, prende Carlitos que, atônito, segura a bandeira de sinalização/vermelha.

Da bandeira de sinalização a bandeira vermelha socialista, esses significantes representavam Carlitos com um semblante, o do “perigoso” o qual não pode ser tolerado por um discurso que denega as diferenças. Esse semblante perpassa no tempo na ficção que a arte expressa como também na ficção que se cria para constituir o lugar da exclusão do outro. Retomo ao segundo acontecimento que suscitou a criação da letra “O Bêbado e a Equilibrista”.

Trata-se dos encontros entre Aldir e Henfil, cartunista reconhecido naquela época, que não se cansava de falar de seu irmão exilado no México, Betinho – que mais tarde o país também haveria de reconhecer seu trabalho como sociólogo.

Assim nascia um dos personagens da canção, o bêbado, aludindo ao brasileiro e a Carlitos, como diz a letra “… Um bêbado trajando luto… me lembrou Carlitos …” , e ainda, “… Sonha com a volta do irmão do Henfil e tanta gente que partiu num rabo de foguete…”.  

O bêbado é acompanhado pela outra personagem da canção, a equilibrista, cuja denotação remete a esperança. Uma esperança que atravessasse mesmo que fosse numa corda bamba o limite imposto pela ditadura militar, o que certamente se corria riscos. Assim ela se apresenta na letra:

…“Mas sei que uma dor assim pungente

Não há de ser inutilmente

A esperança

Dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha

Pode se machucar

Azar!

A esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar

No dia anterior a morte de Aldir Blanc, o presidente da república declarou aos jornalistas: “Cheguei no limite” em tom ameaçador dirigido ao Supremo Tribunal Federal”; e ainda continuou: “daqui para frente não tem conversa”. Numa clara reação intempestiva contra a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes de suspender a nomeação do novo diretor da policia federal. Essa declaração teve um cenário: uma  multidão aglomerada nessa pandemia que se mantinha como um rebanho imunizado pela violência de um discurso totalitário.

Lembrei-me de uma passagem do livro “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” escrito pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz, em que discute a criação do “inimigo” como constituinte dos discursos autoritários e nos apresenta um trecho de um conjunto de ensaios escritos por Hannah Arendt em Essays in Understanding entre os anos de 1930 e 1954, onde Hannah diz:

“Para essa fabricação de uma realidade mentirosa, ninguém estava preparado. A característica essencial da propaganda fascista não esteve jamais em suas mentiras, pois essa prática é mais ou menos comum na propaganda de todo lugar e em todos os momentos. A parte essencial foi que eles exploraram o preconceito ocidental que permite confundir a realidade com verdade”.

Por certo é um alento resgatar através da letra de Aldir, que o lugar do “inimigo” pôde ser combatido com a mobilização da sociedade civil que culminou com os movimentos da anistia e posteriormente o das diretas já, algo que parecia improvável diante da truculência do regime militar e seus atos institucionais.

De tal sorte que a contingência da morte do letrista e a fala mortífera do presidente da república expressam o contraste em que se coloca na linguagem o significante limite. Isso porque o retorno da letra com a morte de Aldir não nos deixa esquecer de que o significante limite pode deslocar-se na linguagem, ou seja, tecendo bordas a um lugar que limite o excesso mortífero que tanto produz o discurso totalitário. Um excesso que vem transbordando por não haver furos, aberturas, um discurso sem limites; por conseguinte, dentre tantos efeitos, o de banalizar e torturar a palavra democracia.

Ainda que estejamos vivendo como se a democracia estivesse por fio, com tantos interesses abjetos quer políticos quer econômicos, ela nos convoca a que continuemos mobilizados a fim de não olvidarmos que ainda sua trajetória é jovem e que necessita cada vez mais empenho para continuar, apesar das tentativas de abortá-la.

Nesse sentido, espero que a música “O Bêbado e a Equilibrista” e a produção cultural nesse país continuem a nos enlaçar em alguns nós, bêbados e equilibristas como vias fundamentais que nos remetem a nossa condição de sujeitos e, por que não, de cidadãos.

Para finalizar, Ruy Castro, articulista da Folha de São Paulo, escreveu o artigo “A seguir, os omissos e hidrófobos” que ilustra como a irresponsabilidade discursiva faz (a) pagar o significante limite, sobretudo entre a vida e a morte. Neste, ele contesta como Aldir Blanc e milhares de pessoas morrem vítimas da covid-19 sem velórios e despedidas, tendo apenas a equipe médica como testemunha das suas mortes. Cito um trecho.

“Não vi até agora a noticia da morte de ninguém que, próximo ou distante de Jair Bolsonaro, mas estimulado por ele, continua negando a pandemia, fazendo carreatas, trocando perdigotos, esbravejando insultos e agredindo enfermeiros e jornalistas. Mas não é possível que a irresponsabilidade, a inconsciência e a crueza sejam imunizantes”.

 

Imagem: autor desconhecido (http://www.circulandoporcuritiba.com.br/2017/11/na-corda-bamba.html)