Pois bem, a guerra. Por Luciano Elia.

Pois bem, a guerra. Por Luciano Elia.

Bom poder contar com Vladimir Safatle para nos acordar do sono político que nos leva a afirmar que o fascismo brasileiro apenas « saiu do armário»! Todos sabemos de algum modo que há algo de macabramente novo na cena, mas não conseguíamos formular isso em palavras tão cristalinas como faz Safatle, pois tínhamos « os olhos submersos na lógica repetitiva do sempre foi assim ».

Por outro lado, não dá pra negar que o solo histórico-cultural e político do Brasil é fértil para constituir um líder com as características e o nível de degradação humana de Jair Bolsonaro. Ele não caiu (ou subiu) do inferno, ou melhor, o inferno das coordenadas históricas brasileiras não é anódino na desgraça que foi sua eleição e no desastre que é seu « governo ». Produto destas condições, ele produz o seu povo, tal como, segundo Freud, Moisés fez em relação aos judeus, oportunamente nos lembra Safatle. Mas é claro que qualquer homologia entre Moisés e Bolsonaro se detém aí, na ação performática do líder, pois no lastimável caso brasileiro o que o líder produz são hordas fascinadas, assassinas e suicidarias que a rigor não existiam antes como tais, estão sendo diária e assustadoramente fabricadas como os « homens feitos às pressas » de Schreber e, como não podemos seguir sua via e fazer com que algum louco salvador entre nós despose Deus para gerar uma nova e melhorzinha raça na humanidade, não nos restará outra opção senão a guerra!

E, se a esquerda brasileira precisa sair de seu contumaz imobilismo (e até covardia, posto que coragem só se vê por ali, do lado do mal – sim, o momento é maniqueísta sim e tem o lado bom e o lado mau, o lado vida e o lado morte, o lado justo e o lado injusto, as vezes é assim…) e parar de morrer pelas análises “inteligentes e geniais” (“não é hora disso”, “agora não”, desse modo não convém”), não dá pra destilar afetos estranhos a tão precisa análise e turvá-la com afirmações inteiramente impróprias como a de que Bolsonaro repete o que “vimos inicialmente no lulismo” (a compensação do abandono da classe alta pela adesão das classes populares). A que serve dizer isso? Se em tantos pontos a análise de Safatle é de uma incomparável clareza, aqui ela tolda as águas por mexer impropriamente no fundo do rio, causando retardo à fluidez de água tão necessária a todos nós! Pois que Lula não é em nenhum aspecto modelo de Bolsonaro, que, como propõe Safatle, “cria” seu povo, mais do que apenas o revela ou modela. Se « quem sabe faz a hora » e não cai nas armadilhas de uma falsa estratégia procrastinadora em nome de uma suposta « finura da razão », também sabe que não é hora de pequenas diferenças.

Duas pontuações a mais: não tem terceira opção entre « a bolsa ou a vida », não vai dar pra escolher « as duas » não. Temos que escolher a vida e perder sim a bolsa, o que não é a mesma coisa que acreditar que a escolha se formule entre economia e proteção à vida. Perda no plano do capital, sim, nos valores das bolsas, e redução de danos no plano das vidas, é o único caminho viável. Segunda e última observação: as colocações de Safatle – esta, que nos prepara para a guerra, como uma anterior que declarava a morte da esquerda – não produzem em mim nenhum sentimento de terror como vejo em pessoas próximas. Pelo contrário, para mim apontam com bússola certeira o único caminho da saída. Fazendo minhas as palavras da Marquesa de Merteuil: Eh bien, la guerre!

O artigo de Vladimir Safatle está em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-04-20/preparar-se-para-a-guerra.html