REVERBERAÇÕS DO EVENTO DE 23/11 EM PORTO ALEGRE[1]
O MITO DO INDIVÍDUO
Liane Pessin Gutierrez
Psicanalista – EBEPPOA
Por que usar a palavra “mito” no título desta breve reflexão sobre uma experiência de encontro coletivo que vivi no 23/11, no Studio Clio, em Porto Alegre?
“Mito”, palavra tão (ab)usada atualmente… Travessuras do inconsciente à parte, vou utilizá-la porque foi justamente o que me veio à cabeça após a intensidade de afetos que circularam naquele encontro. Mais uma experiência de queda do mito do Indivíduo, foi o que pensei.
Como um dos ídolos da Modernidade, a ideia de indivíduo aponta para a possibilidade de um homem livre, autônomo e criador do seu próprio destino. Um homem que está no centro de sua vida e que se relaciona com os outros na medida de sua vontade e necessidade de construção do campo social. Sua integração, ideia essencial, se sustentaria pelas condições desejáveis e conquistáveis de racionalidade, consciência de si e identidade.
Temos que considerar que, como produção do espírito moderno, a forma Indivíduo é uma expressão humana de desejo de liberdade e criou efeitos de libertação. Entretanto, na complexidade da experimentação dos “projetos-indivíduo” surgem seus mal-estares que reapresentam a condição humana desta forma, ou seja, ela não é uma superação, é uma contingência genealógica, parcial e datada. Consumindo-se nas suas contradições, a forma Indivíduo vai desvelando seu idealismo despótico e performático no homem empreendedor de si, nas crenças onipotentes infantis de controle e de auto superação e na suposição da liberdade individual.
A unidade substancial da consciência é posta à prova e não resiste. Os três grandes críticos da modernidade (Freud, Nietzsche e Marx), desde perspectivas diferentes, construíram obras que analisaram os sintomas da decadência desse mito.
Quando, no evento do dia 23, tratamos de falar do homem que só é homem porque deseja sonhar seu lugar, porque existe na tarefa de produzir os seus sonhos, vivemos juntos a queda daquele que não é dividido, in-diviso, Indivíduo. Nossas partes clamaram por encontro para poderem falar, porque só se sente falando quem é escutado, quem escuta seu eco em alguém.
É no tecido da linguagem, que é coletiva, que nos precede e que nos convoca para a partilha, que podemos bordar a nossa singularidade e construir um lugar para habitarem nossas diferenças. Este é o sonho da democracia, o sonho de investimento do lugar comum, arquitetura de potencialização da erótica da vida.
[1]“Por quê sonhar a democracia?” Evento conjunto do EBEPPOA e PPD em comemoração aos 3 anos de existência do PPD, realizado em 23/11/2019, no Studio Clio, em Porto Alegre.