Sabrina e Marielle, por Mariana Castro

 

“Marielle, eu me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos!”.

Não foi por acaso que a ativista Sabrina Bittencourt se declarou filiada à mesma trincheira de Marielle. Tristemente, as duas tiveram um fim similar, mas também uma luta semelhante em sua força e coragem. Sabrina Bittencourt foi suicidada. A quantidade de ameaças e a pressão psicológica que estava sofrendo por ter mexido no vespeiro em que mexeu foi, acreditamos, o que levou Sabrina a cometer o suicídio.

Em depoimento dado à revista Marie Claire em 19/12/2018, ela conta um pouco de sua trajetória, marcada precocemente [dos 4 aos 8 anos] pelo abuso sexual que sofreu de homens que eram adeptos à mesma religião que a sua, os mórmons. Seguido deste abuso, ocorreram outros casos igualmente graves, alguns ligados a figuras pertencentes à igreja, outros não. Sua vida foi marcada pelo abuso e pelo estupro e Sabrina fez desta incidência e revolta motor de um engajamento que se manteve aceso até o último dia de sua vida. “Entrei de cabeça no objetivo de ajudar essas pessoas que, como eu, sofreram abusos dentro de uma instituição religiosa e acredito numa justiça social em que toda a sociedade possa proteger a vida das pessoas, diminuir o poder de pessoas que se utilizam da fé para abusar, expondo-as publicamente de forma responsável”. Ela era uma das pessoas responsáveis por encorajar e dar suporte às mulheres que resolveram abrir denúncias e tornar públicos os abusos cometidos por João de Deus, que é investigado por estupro, estupro de vulnerável, violação sexual, porte ilegal de arma e, além disso, investigação em que Sabrina estava atualmente comprometida, como mostra o vídeo que ela gravou dia 3/1/2019, um mês antes de sua morte, havia também uma rede de tráfico de bebês e crianças há mais de vinte anos em Abadiânia e Anápolis (GO) e também em regiões do norte de Minas, comandadas por João de Deus e sua quadrilha, bem como mulheres, “em geral mulheres negras, de baixa renda”, utilizadas como escravas sexuais. Era com essa luta e investigação que Sabrina Bittencourt estava comprometida, e podemos imaginar a quantidade e a força dos ataques e ameaças que ela estava sofrendo – para além daquelas que tornou públicas.

Além de estar envolvida neste caso, Sabrina também prestou apoio às mulheres que foram vítimas de abusos não só sexuais, bem como psicológicos e financeiros, do “guru do amor”, Prem Baba e era também militante ativa do COAME (Contra O Abuso no Meio Espiritual).

Sabrina esteve comprometida com a denúncia do abuso de poder intrinsecamente relacionado ao patriarcalismo. Sabrina estava engajada no desmascaramento da hipocrisia, dos silêncios, das opressões que comumente acontecem nas Igrejas e seitas e nós, como psicanalistas e feministas, reconhecemos sua luta tão irmã à nossa, por muitos motivos, mas também por seu caráter de denunciação da farsa e da canalhice dos usos nefastos e altamente nocivos que se pode fazer de uma transferência.

Lendo depoimentos de mulheres que foram aliciadas por Prem Baba, repete-se o mantra: “É necessária a entrega e a confiança estritas ao guru para que a cura aconteça”. Mulheres, confusas e enojadas, chegavam a vomitar após serem forçadas a ter relações sexuais com Prem Baba após escutarem que aqueles ‘’exercícios de purificação’’ eram necessários para seus tratamentos.

Sabemos que é certamente na direção contrária à submissão e adoração de um líder, de um mestre ou de um guru que caminha a ética da psicanálise, e por conta disso, nos irmanamos à luta e à semeadura tão corajosas de Sabrina Bittencourt.

Também escrevemos este texto porque, enquanto psicanalistas, defendemos a clínica como um espaço que também é político e sabemos o quanto o oferecimento da escuta psicanalítica pode, em muitos casos, fazer parte da rede de cuidados que uma mulher necessita em situações psíquicas extremas, como a que enfrentou Sabrina. Não se trata aqui de desrespeitar a sua escolha, mas de ler as entrelinhas de sua última mensagem: Sabrina matou-se porque não aguentava mais. Sua luta permanecerá viva, como a de Marielle, mas precisamos umas das outras VIVAS!

Imagem: “Vessel of Genealogies”, de Firelei Baéz. Ilustração do feminismo por meio da diversidade de raças, religiões, linguagens e sexualidade, caracterizado como feminismo “interseccional”. Fonte: Chicago Tribune, por Lori Waxman. Junho de 2017.