É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre.
(Lacan, 1969-70, p.218)
Prelúdio
A versão inicial deste ensaio foi elaborada em janeiro de 2018 para integrar uma compilação de textos sobre o enigma de Édipo na atualidade. Tomando-se essa atualidade como a vida coletiva na brasilidade e o Complexo enquanto estrutura, propus um debate em torno do enigma da servidão voluntária. Esse fenômeno ressurge, se é que deixou de se fazer presente em nosso tecido social, de modo insidioso e em uma versão que flerta perigosamente com o neofascismo e fundamentalismo religioso.
Com efeito, essas páginas são um esforço de resposta ou de leitura crítica dos funestos sintomas, porque não dizer, patologias do social na brasilidade contemporânea. Diversos vértices, isto é, uma abordagem interdisciplinar, se faz necessária para abordar o conjunto dos problemas jogo nos níveis político, jurídico, econômico e, sobretudo, ético. Não obstante, as hipóteses aqui levantadas futuramente poderiam ser conjugadas a outras linhas de abordagem, por exemplo, em torno do conceito de estado de exceção.
Contudo, o recorte escolhido é o tema da servidão voluntária e a exploração das possíveis contribuições freudianas acerca desse fenômeno. No seu horizonte, esse ensaio esboça proposições de como o discurso psicanalítico poderia enfrentar, nas instituições de analistas e também no espaço público mais amplo, tais modos de subjetivação e pactos masoquistas.
Édipo, sujeito e mal-estar
Freud opera uma inflexão na suposta oposição entre psicanálise individual e social de modo incisivo. Vejamos isto diretamente na letra freudiana: “na vida psíquica do ser individual, o outro é via de regra considerado enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e, portanto, a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente justificado” (FREUD, 1921, p. 14, grifos meus).
Vale ressaltar, a expressão desde o início em todo seu alcance. Primeiramente, tal concepção habitava o espírito de Freud desde os primórdios: já no seu “Projeto” Freud (1895) afirma que o infans, impossibilitado de realizar ações específicas por si mesmo, produz um apelo à “ajuda alheia” (p.370). Freud deriva daí a “importantíssima função comunicação” e, além disso, concluí que “o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais” (p.370). O salto que vemos aí é do individual ao coletivo, formando-se um enlace indissociável.
Freud esboça, portanto, uma noção particular de sujeito. O fundamento de tal sujeito se dá inescapavelmente nas suas relações ao outro, isto é, o sujeito é atravessado pelo semelhante que lhe dá suporte desde o início e em diversos sentidos. Não nos deteremos nos detalhes de tudo isto, pois retomo essas teorizações bem conhecidas apenas para assentar o terreno de nossas questões norteadoras: qual seria o estatuto do Édipo para o sujeito em psicanálise hoje? Qual é o seu lugar e função? Quais seriam as suas versões?
A noção de Complexo de Édipo seria um operador metapsicológico? Um dos shibboleths da tradição psicanalítica? Trata-se de uma fantasia ou fantasia originária (e patrimônio da espécie)? Ou ainda, o que está em jogo é um mito, uma produção artística ou uma narrativa antropológica?
Provavelmente, com algum esforço, seria possível inscrevê-lo nesses diferentes registros. No entanto, assim não chegamos a responder qual seria o estatuto do Édipo para o sujeito e, mais especificamente, para o sujeito do mundo atual. Faz-se necessário reconhecer que ao longo da história observamos diversas mutações nos discursos e formas de subjetivação no tecido social. A revitalização dos feminismos e os debates em torno das transsexualidades são exemplos marcantes disso na contemporaneidade. De modo abrangente, as questões de gênero e as novas configurações familiares, colocam em xeque a afirmação de que a anatomia seria destino da psicossexualidade (FREUD, 1924).
Rigorosamente falando, porém, a noção de falo não se restringe ao pênis ou a qualquer outro órgão do corpo, assim como, a conflitiva edípica não se confunde com a série concreta pai-mãe-filho(s). Estas seriam algumas premissas básicas para realizar uma leitura do Complexo de Édipo sem recair em certos preconceitos normativos ou desenvolvimentistas bastante disseminados e enraizados.
Precisamente em razão destas tensões, porém, é que se dá a ver a significação que nos interessa do ponto de vista psicanalítico, pois nos remete aos distintos elementos e combinatórias possíveis na estrutura em questão para o sujeito imerso em determinado contexto. Disto resultariam as distintas configurações ou versões do Complexo de Édipo em sua arquitetura plástica.
Contudo, apesar desta plasticidade de arranjos, a estrutura edípica visa responder sempre à uma problemática fundamental, descrita por Freud em Totem e tabu (1912-13) e, posteriormente, retomada por Lévi-Strauss (1949), qual seja, a interdição do incesto. Diferentemente da tragédia de Sófocles (2009), no mito de Freud (1912-13) o assassinato do pai da horda ao invés de liberar o acesso ao gozo incestuoso, acaba por restringi-lo. Devido ao sentimento de culpa e ameaça da sucessiva repetição do ato de destronamento, surgem o totemismo e a exogamia como dispositivos reguladores da ordem social incipiente. Ou seja, o personagem do pai morto só adquiriu eficácia porque estabeleceu relação com a lei, tornando-se seu lugar simbólico em tais circunstâncias.
Os arranjos e permutas desse interdito se alteram conforme as coordenadas linguageiras e antropológicas de cada cultura e época, remanejando-se assim, os papéis e códigos. Nota-se que isto também pode ser extraído diretamente das páginas de Totem e tabu (Freud, 1912-13).
Não obstante, em sua lição do Seminário 17, intitulada Do mito à estrutura, Lacan aponta que para além do mito ou do “sonho de Freud”, persiste inexoravelmente a verdade da castração (LACAN, 1969-70). Seria este, precisamente, o leito de rocha de que Freud nos deu notícias.
Sendo assim, pode-se entender que a diferença anatômica não seria mais destino, mas apenas um dos meios pelos quais a alteridade e a falta, inescapáveis, se apresentam aos sujeitos. A leitura em questão neste ensaio, portanto, encontra-se mais no nível da estrutura do que da novela familiar.
Nesse sentido, destaco que a condição de desamparo, a qual remete diretamente a insuficiência e a consequente dependência do sujeito ao outro humano, transpassa toda e qualquer ordem social. Mais do que isso, é a sua própria razão de ser. É isto que apontamos estar no fundamento tanto da divisão do sujeito quanto da desconstrução do suposto antagonismo entre psicanálise individual e social.
Com efeito, a regulação das pulsões sexuais e agressivas delineiam os impasses do sujeito em relação à vida coletiva. Este Unbehagen (mal-estar), observado por Freud na tensão entre os registros da clínica e da cultura, o leva a escrever já em 1908 seu primeiro texto social, Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna (FREUD, 1908).
A servidão voluntária
Safatle (2018) nomeia como principais textos sociais de Freud Totem e tabu (FREUD, 1912-13); Psicologia das massas e análise do Eu (FREUD, 1921); O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927); O mal-estar da civilização (FREUD, 1930), e Moisés e o monoteísmo (1938). Com efeito, afirma que o tema da servidão atravessa todos estes escritos enquanto fio condutor e, em razão disso, situa Freud como leitura fundamental nos debates políticos e filosóficos acerca do poder e da servidão (SAFATLE, 2018).
No século XVI, no Discurso da servidão voluntária, La Boétie (1548/1999) forja este sintagma perturbador. Isto porque na crítica social ou no senso comum, a servidão se daria de modo involuntário, isto é, pela imposição ao sujeito e jamais de forma voluntária. No entanto, um olhar atento nos mostra justo o contrário disto.
A provocação em questão é por quê, afinal de contas, nos submeteríamos ao outro de maneira voluntária? Esta é uma pergunta recorrente no cotidiano da clínica psicanalítica, tanto por parte dos analisandos quanto por parte dos analistas, acerca das repetições que instalam de forma demoníaca.
Birman (2006), em seu livro Arquivos do mal-estar e da resistência, conjuga a servidão voluntária à esta condição masoquista que atravessa os sujeitos. Na sua aguda leitura, Birman (2006) propõe que a servidão anteriormente seria involuntária, pois, na tradição religiosa dominante, a servidão seria imposta de cima pelas forças divinas onipotentes, sem a menor possibilidade de interrogação.
Contudo, a partir das revoluções científicas do Renascimento e da concepção do Estado, o sujeito encontrar-se-ia numa condição de servidão daquilo que se estabelece nitidamente como soberania já em um registro antropocêntrico. Passível, portanto, de crítica e de transformação por ações humanas (BIRMAN, 2006).
Na cena da modernidade a Revolução Francesa é o marco desta possibilidade. No entanto, ao contrário do que se sonhou, seja nesta revolução, nas diversas revoluções ao redor do mundo no século XX ou na mais recente Primavera Árabe, a servidão segue perpetuando-se voluntária ou involuntariamente com a renovação dos fundamentalismos religiosos e políticos.
Daí, Birman (2006) inserir nesta intrincada discussão o conceito de masoquismo em suas apresentações erógena e primária, feminina e moral, descritas e articuladas por Freud (1924) em O problema econômico do masoquismo. Em razão da economia deste breve ensaio, irei pressupor a familiaridade do leitor com tais conceitos.
Enfim, a hipótese de trabalho em pauta é que diante da queda ou da inoperância dos referenciais do sujeito a partir da modernidade, o desamparo sofreria um incremento e daí se intensificaria uma nostalgia do pai. Por essa via, insurgiriam as figuras do algoz protetor e do pacto sadomasoquista. O discurso masoquista conteria a seguinte fórmula: “eu aceito qualquer coisa, faça comigo o que quiser, mas não me deixe desamparado” (BIRMAN, 2006, p.28).
No entanto, como este enunciado viria a se instalar tanto no cotidiano de nossa clínica quanto na cena política, se depois de Nietzsche (1882) anunciar a morte de Deus, Sartre (1943) também afirmou categoricamente que “o homem está condenado a ser livre”? O ponto nevrálgico aí é o significante condenado, pois tal libertação das amarras do Destino nos exigiria responsabilidade e um imenso trabalho para nos conduzirmos numa vida que não possui sentido prévio.
Precisamente aí encontramos a angústia frente ao desamparo e a insurgência da nostalgia do pai, protetor e onipotente (Freud, 1930). Enfim, o ditado popular “antes só do que mal acompanhado” é virado de ponta-cabeça e, então, pervertido em “antes mal acompanhado do que só”.
Enfim, deste conjunto é possível extrair a hipótese de que a servidão voluntária é uma das formas de apresentação do masoquismo no laço social.
Do individual ao coletivo e vice-versa
Insiro neste ponto alguns fragmentos clínicos e do cotidiano social para articular a problemática em pauta. Início por Matheus que foi encaminhado como “caso perdido” devido ao seu abuso de drogas e paralisantes inibições. Na sua narrativa não haviam enlaces românticos ou fraternos, mas pesados dramas familiares e diversas desistências de projetos. Após algum tempo de trabalho analítico, quando se esboça uma saída da posição de submissão e dependência em relação à figura paterna, diante de uma interpretação responde: “se paro de me detonar e cresço, me liberto de alguma forma, sinto que deixaria o meu pai meio que sem função. E eu mesmo fico como se fosse um cachorro que quando é solto da coleira não sabe o que fazer e fica parado olhando para o dono”.
Nota-se nesse breve recorte a superposição dos masoquismos libidinal e moral, em diferentes níveis de desintrincação pulsional. Precisamente nesse sentido é que Freud (1924) descreve o masoquismo como sendo a expressão clínica da pulsão de morte, isto é, através da compulsão à repetição de vivências dolorosas e autodestrutivas. Outro fator, digno de nota (e que retornará logo adiante), é a presença dos fantasmas de bate-se numa criança durante o processo analítico.
Pode-se inscrever nesse cenário, portanto, a figura trágica da servidão voluntária, mesmo que a compulsão se imponha ao sujeito de forma involuntária, pois o sujeito é por excelência dividido. Esta é uma das espinhosas problemáticas que o masoquismo coloca à clínica psicanalítica.
Enfim, passo ao cenário político para avançarmos no argumento central. Incide na paisagem brasileira uma inquietante estranheza ao ouvirmos súplicas pelo retorno da ditadura militar. Isto mesmo após a legitimação da necessidade da criação da Comissão da Verdade e das Clínicas do Testemunho, projetos destinados ao esforço de elaboração dos efeitos deletérios de tal regime no tecido social. Inclusive, participam ativamente deste movimento algumas instituições psicanalíticas brasileiras. Um dos paradigmas deste trabalho pela cultura democrática é justo “recordar para não repetir”, o qual nos evoca de imediato um clássico texto freudiano (FREUD, 1914).
Outro fenômeno de massa que se dissemina a olhos vistos é o fundamentalismo religioso. Nas redes sociais ou na política nacional, o discurso segregacionista se faz notar, inclusive, em oposição a condição laica do Estado. Insurgem também no território brasileiro, facções autodenominadas de exércitos da salvação ou da fé. Freud é enfático a respeito do futuro desta ilusão e de suas associações com o poder do Estado (FREUD, 1927).
A crescente destes discursos, frequentemente converge como pretensos antídotos para os problemas crônicos da violência e da corrupção, isto é, como suposta cura do mal-estar à brasileira. Nas tentativas de controle e normatização do social, o território da sexualidade é um dos registros privilegiados como enunciou Foucault (1977). Esta lógica se materializou de modo incisivo no fechamento da exposição QueerMuseum na cidade de Porto Alegre em 2017.
De modo unheimilich, porém, surgem músicas de conteúdo misógino e de apologia ao estupro no topo das plataformas de reprodução digital. Isto sem entrar nos detalhes dos números assombrosos das violências sexuais (estupro, pedofilia etc.) e outras violências contra as pessoas de orientação sexual ou identidade de gênero que não coincidem com a norma dita tradicional ou dominante.
Se pode destacar desse cenário, a presença da servidão voluntária através de suas roupagens militarista e religiosa de caráter totalizante, isto é, a tentativa de estabelecer uma Weltanschauug a qual se submeter. Com efeito, o pensamento freudiano é crucial para os debates acerca de tais fenômenos, pois é precisamente em relação as instituições sociais da Igreja e do Exército que Freud opera sua leitura crítica da psicologia das massas[1].
Não obstante, o masoquismo é marcante no funcionamento das massas. Reside nesta ideia um elo mais direto com a servidão voluntária que, como vimos, é insidiosa nas cenas da clínica, nos regimes ditatoriais e fundamentalismos religiosos. No entanto, é necessário demonstrar efetivamente qual seria a participação do masoquismo nessas formações.
O pai da horda e a criança espancada
No registro das massas artificiais Freud (1921), insistentemente, coloca a figura do líder no centro gravitacional destas formações. Avançando nessa proposição, por meio da análise da subjugação hipnótica, isto é, a relação hipnotizador-hipnotizado, afirma que ocorreria uma massa a dois. Deste modo, fica evidente que o termo massa em Freud não é redutível à noção de aglomeração ou manada. Muito mais do que a soma numérica, está em jogo a radicalidade da transferência. Vemos o fundamento disto na seguinte passagem:
Com suas medidas, o hipnotizador desperta no sujeito uma porção da herança arcaica deste, a qual também se harmonizou com os pais e na relação com o pai experimentou uma revivescência individual, a ideia de uma personalidade potente e perigosa, ante a qual só se poderia ter uma atitude passiva-masoquista à qual a vontade tinha de se render, parecendo ser uma arriscada empresa estar a sós com ela, “cair-lhe sob os olhos”. Apenas assim, aproximadamente, nos é dado a imaginar a relação de um indivíduo da horda primeva com o pai originário (FREUD, 19121, p.91).
Freud conjuga tal submissão da vontade ao poder totalitário do Urvater (pai originário) a uma posição masoquista. Esta mesma situação fantasmática é estudada por Freud (1919) em outro contexto, mas também no quadro da estrutura edípica no ensaio intitulado Uma criança é espancada.
Analisando diferentes fases desta fantasia, Freud (1919) concluí que sua essência consiste na ideia de que “se meu pai me bate é porque me ama”. Este enunciado se forma através de uma regressão para analidade do ato genital, ou seja, o espancamento é um substituto anal-sádico do amor incestuoso. Ao mesmo tempo, a surra configura uma punição pela satisfação atingida. De forma engenhosa, ocorreriam em tais fantasias uma satisfação incestuosa e a expiação da culpa por tal realização.
No historial clínico do Homem dos Lobos, Freud (1918) nos descreve a presença de tais fantasias de espancamento. Mais do que isso, narra as encenações do menino que convocam espancamentos por parte de seu pai. Freud interpreta daí que se tratavam de seduções masoquistas. Contudo, não encontramos nesta narrativa clínica um pai sádico ou então uma mulher-fálica como no romance de Sacher-Masoch, “A vênus das peles” (1870/2015).
Ao contrário, é o sujeito quem tenta instaurar uma figura, o pai no caso do ainda menino Serguei, em tal posição dominadora. Na análise, esta demanda será transferida para Freud de modo peculiar e, na vida romântica, o Homem dos Lobos se queixará de sua submissão relacionamento após relacionamento. No livro de Sacher-Masoch (1870/2015) é também Severin que oferece o chicote a Wanda, sua dominadora, sem os açoites da qual sente-se perdido em completo desamparo.
O caso do Homem dos Lobos nos é de particular interesse no que se refere as relações entre o masoquismo e os fenômenos de massa, como dito, já que não se trata de uma questão numérica. Sua alcunha, a qual remete-se ao sonho paradigmático com os lobos coloca em cena um antropomorfismo típico das religiões totêmicas. Na fobia, esta figura canina é um substituto direto do pai da mesma forma que ocorre no totemismo. Além disso, uma intensa fase de neurose obsessiva de conteúdo religioso assolou a infância de Serguei. Vemos neste conjunto, os fenômenos típicos das massas plasmados na subjetivação de um sujeito.
Esta lógica havia sido explicitada e radicalizada por Freud, previamente, no caso do paranoico Schreber. Ao contrário, encontramos neste escrito uma figura paterna sádica, produtora de uma verdadeira “pedagogia ortopédica” em sua obra médica. No entanto, para sustentar a afirmação acima formulada, é preciso retornar ao texto de Uma criança é espancada, pois é neste escrito que Freud (1919) levanta a hipótese de uma participação fundamental do masoquismo na paranoia.
Freud introduz tal proposição a partir da observação de que aquelas pessoas que apresentam fantasias de espancamento evidenciam uma sensibilidade e irritabilidade especial contra quem quer possam colocar na série paterna. Este ranço sintomático, acabaria por convocar o castigo por parte dessas figuras paternas. Daí conclui: “não me surpreenderia se algum dia fosse possível provar que a mesma fantasia é a base do delirante espírito litigioso da paranoia” (FREUD, 1919, p. 210).
O Deus violador e tirânico de Schreber, o qual Freud (1911) também associa ao pai da horda, pode ser compreendido em diferentes registros. Dentre esses, no nível das projeções e consequentes distorções do enunciado “Eu [um homem] o amo [um homem]”, que giram em torno da problemática da castração e da corrente libidinal homossexual. Contudo, outra dimensão em jogo, reconhecendo-se o trabalho do delírio como tentativa de cura, trata-se do esforço de remendar a metáfora paterna forcluída da subjetividade.
Recordemos nesse sentido, que Schreber aceita sua emasculação como via de reconciliação com Deus e a Ordem do Mundo (SCHREBER, 1903/1995). Diante do retorno deste Urvater na figura de um Deus-todo-poderoso, tal reinstauração só pode acontecer, como nos diz Freud (1921), através da submissão masoquista.
Diante da inoperância da função simbólica da lei aquilo que retorna é a “lei” de um sistema paranoico. Entretanto, o resultado desta submissão à Deus, consagraria a Schereber enorme prestígio e poder, pois ele gestaria uma nova raça de homens puros e que carregariam sua insígnia, os schereberianos (SCHREBER, 1903/1995).
O delírio nazista é assombrosamente similar a esta construção de Schreber. Ao invés de homens schereberianos, porém, teríamos apenas arianos. Por sua vez, tal delírio atuaria no nível do funcionamento de massas, agora em seu sentido também numérico. A figura de Adolf Hitler seria a personificação do Urvater ressuscitado. É notório que assim como no sistema de Schreber, a submissão total ao Füher teria como promessa a supremacia racial, econômica e territorial no planeta.
Vemos aí economia da servidão voluntária em sua radicalidade. O servilismo, além de proteger do desamparo, guarda a promessa de metamorfosear-se em dominação dos semelhantes tidos como estrangeiros e estranhos. Está em jogo nisto, o narcisismo das pequenas diferenças e a tentativa de apagamento de todo e qualquer traço que indique a alteridade.
Neste ponto, vale recordar, o cenário em que insurgiu o nazismo na Alemanha. O final da Primeira Guerra Mundial havia sido absolutamente trágico para o país que, deste modo, se encontrava humilhado enquanto tradição, quebrado economicamente e destituído de grande parte de seus territórios. Ou seja, encontrava-se no extremo oposto da promessa nazista. Enfim, se pode inferir daí uma ferida narcísica e uma crescente do desamparo nesta população. Daí a nostalgia do pai e a reinstauração do Urvater como soberano da massa-horda.
Este conjunto indica, portanto, elementos presentes em uma sociedade de risco para a insurgência de regimes fascistas. Precisamente nesse sentido é possível lançar as seguintes questões: quais as possíveis leituras e contribuições da psicanálise acerca da política e da democracia?
Certamente, a própria manutenção do discurso psicanalítico na polis só é viável em sociedades democráticas. Não por acaso, na ocupação nazista da Áustria, os livros de Freud foram queimados em praça pública.
O avesso da servidão
O nazismo nos oferece um exemplo caricatural da servidão voluntária e deu seu preço. Nesse sentido, vale lembrar, Hitler foi eleito nas urnas. O valor deste exemplo extremo de patologia do social reside justo no exagero de suas formas de apresentação de uma problemática bastante comum. Esta operação é justamente o que permite a Freud o trânsito da psicopatologia à vida cotidiana e vice-versa.
A partir do que foi dito até este ponto, pode-se formular que a economia interna do nazismo engendra a promessa de um Eu-Ideal. Precisamente por essa via, torna-se possível retirar às máscaras do discurso da servidão voluntária: ao desvelar não só o gozo masoquista aí dissimulado, mas sua tentativa de dominação do outro por meio da justificativa da obediência aos mandatos do líder. Uma das características marcantes dos regimes totalitários, assim como, da horda originária, é a centralização do poder em uma personalidade dominante.
A respeito da obediência e de seus desdobramentos, evoco um livro fundamental de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém (ARENDT, 1964). Neste escrito Arendt compartilha seu assombro diante das declarações de réu, Otto Adolf Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto. Após anos de refúgio, em 1960, Eichmann foi capturado pelo serviço de inteligência israelense na Argentina e levado para ser julgado em Israel, sendo condenado à morte em 1962.
Ao ser interrogado sobre seus crimes de guerra, contra a humanidade e o contra o povo judeu, Eichmann responde que estava apenas cumprindo ordens. Deste modo, situa suas ações no nível da trivialidade operacional e justifica-se na obediência de um mero funcionário. Daí a banalidade do mal de que nos fala Arendt (1964).
A especificidade da negação de responsabilidade no caso de Eichmann, porém, em seu recurso de apelação, consiste na alegação de que o réu teria sido forçado a servir como um instrumento nas mãos dos líderes. Reside aí a institucionalidade da servidão e um de seus arranjos econômicos: a servidão de voluntária se converteria em involuntária para (re)projetar a responsabilidade no líder-Urvater eximindo o sujeito de seus atos.
Direito do homem à psicanálise?
Após ser interrogado por oficias de Gestapo, Freud foi convidado a assinar um documento declarando que não havia sofrido maus tratos. À punho acrescentou uma nota, recomendando altamente a Gestapo a todos (GAY, 1988). Freud encontrou neste chiste uma forma de enfrentamento. A insubmissão freudiana segue, após seu exílio na Inglaterra, com a publicação de Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1938). Escrito no qual Freud renova sua leitura crítica da religião, mas toca também nos conflitos étnicos em plena ascensão do antissemitismo.
A partir destes gestos freudianos, retomo as inquietações antes delineadas: quais seriam as possíveis leituras e contribuições da psicanálise acerca da política e da democracia no sentido amplo destes termos?
Um dos destinos possíveis da conflitiva edípica, conforme o cenário de Totem e Tabu (FREUD, 1912-13), é a ordem fraterna. Nesta solução encontramos a passagem do estado de natureza ao estado de cultura e os gérmens da democracia. Na ausência desta ética fraterna, tende a retornar o poder despótico e absolutista do pai originário, a saber, uma soberania que opera apartada da castração simbólica. Em consequência disto, a servidão retorna e se incrementa. Não por acaso, insurge em 2016 no cenário brasileiro, o ato inaugural do movimento Psicanalistas pela Democracia na Universidade de São Paulo (USP).
Enfim, a partir desta e de outras leituras e articulações, a psicanálise pode de fato inserir-se no registro sócio-político. E, talvez, mais do que estar na “contramão da cultura”, como se anuncia, a psicanálise possa implicar-se cada vez mais com seu compromisso ético e função no tecido social. Deste modo, enquanto discursividade poderá operar no Kulturarbeit, isto é, no trabalho de cultura ou processo civilizatório de que Freud nos deu notícias.
No entanto, de quais formas? Certamente, nas práticas em intensão e extensão já muito debatidas, mas também e necessariamente, na micropolítica das instituições psicanalíticas e na análise das perspectivas do movimento psicanalítico. Neste sentido, evoco um trecho da carta convocatória aos Estados Gerais da Psicanálise no final do século XX:
O poder que se desenvolve no seio das instituições, repousa comumente na falta de resolução de transferências, na submissão dominante e a seu código linguístico, que servem muito mais para preservar os controles sociais e burocráticos, do que para abrir novas fronteiras à pesquisa e à extensão de nossos conhecimentos. […]
A importante reunião realizada em fevereiro último, em Paris, para examinar o que aconteceu no Rio de Janeiro durante os anos de repressão militar e sua repercussão internacional – sendo este caso exemplar de um sintoma da história e do movimento psicanalítico – levou-me a propor a convocação dos Estados Gerais da Psicanálise, com o objetivo de abrir um espaço que não excluísse o questionamento das modalidades de formação, de ensino, de transmissão e de organização institucional da psicanálise […] (MAJOR, 1997, s/p).
O referido episódio em solo carioca é o insólito caso Amílcar Lobo, psicanalista em formação e associado justamente a ditadura militar. Como dito, os casos caricaturais podem dar notícias de fantasmas cotidianos. Nota-se ainda, no início desta passagem citada, por meio dos termos da “submissão dominante”, os fantasmas masoquistas que incidem também nas mais diversas tradições psicanalíticas ao longo de sua história (BIRMAN, 2006).
Uma das respostas aos Estados Gerais da Psicanálise nos chegou nas palavras do filósofo francês Jacques Derrida (2000), na conferência intitulada “Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade”. Derrida endereça sua fala à uma plateia de analistas em Paris, convocando-os a analisar justo aquilo que resiste a suas análises no mundo contemporâneo. Afirma que a psicanálise e, somente ela, por ter postulado a noção de Todestrieb [pulsão de morte] e a teorização em torno de Totem e Tabu, poderá pensar, penetrar ou modificar os axiomas da ética, do jurídico e do político no plano da cultura. Em função desse empreendimento, Derrida evoca então uma razão psicanalítica, humanidade do homem psicanalítico, ou ainda, o direito do homem à psicanálise.
Vemos aí uma convocatória inquietante à psicanálise. Isto tanto no nível de seus fundamentos quanto de suas práxis.
Na leitura que esboço aqui, um dos desafios em jogo seria elaborar uma política interna e uma inserção na polis fundada na lógica fraterna. Para tanto, se faz necessária a constante análise e perlaboração não só do destino parricida, mas também do filicídio e dos modos de subjetivação masoquistas enquanto versões do Complexo de Édipo.
Seria esta uma razão ou humanidade possível, a qual implicaria a consequência de um direito do homem à psicanálise? Recordamos com frequência que Freud nomeou a psicanálise como ofício impossível, no entanto, não podemos esquecer que ele não abriu mão de sua prática cotidiana até o final de sua vida.
Notas
[1] Bem entendido, as características negativas que Freud atribui as massas, tais como a redução da capacidade pensamento ou diluição da responsabilidade, tratam-se de um funcionamento particular. Proponho distinguir, portanto, outras modalidades de ação grupal do rótulo das massas, nomeando-as de coletividades.
Referências
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BIRMAN, J. Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
DERRIDA, J. Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta, 2001.
FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. In: J. Strachey (Ed. & Trad.) Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. I.
________. Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna (1908). In: J. Strachey, Edição Standard Brasileira das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. IX.
________. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (1911). In: J. Strachey Edição Standard das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XII.
________. Totem e tabu (1912-13). In: P. C. Souza, Obras completas, vol. 11. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
________. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: J. Strachey Edição Standard das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XII.
________. História de uma neurose infantil (1918) In: J. Strachey (Ed. & Trad.) Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XVII.
________. Uma criança é espancada (1919). In: J. Strachey (Ed. & Trad.) Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XVII.
________. Psicologia das massas e análise do Eu (1921). In: P. C. Souza, Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, vol. XV.
________. A dissolução do complexo de Édipo (1924). In: P. C. Souza, Obras completas, vol. 15. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
________. O problema econômico do masoquismo (1924). In: L. Hans. Escritos Sobre a Psicologia do Inconsciente – Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. III.
________. O futuro de uma ilusão (1927). In: J. Strachey (Ed. & Trad.) Edição Standard das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006, vol. XXI.
________. O mal-estar da civilização (1930). In: P. C. Souza, Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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Referências áudio-visuais
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Sander Machado da Silva é psicanalista, membro associado do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA). Co-organizador e autor dos livros Retornos do Homem dos Lobos (Sulina, 2018) e Interlocuções na fronteira entre psicanálise e arte, Artes & Ecos (2017).