Duas exposições no Instituto Moreira Sales revelam que o que pode dar conta do pior que nos aconteceu é mesmo o melhor que temos – Por Paulo Endo

 

Ocupam 3 galerias do IMS as exposições de Claudia Andujar e Millor Fernandes. Obras realizadas por décadas, explosões criativas, interpretações sobre o passado e indicações éticos sobre o porvir.

Elas evidenciam um país com muitos legados. O legado dos talentosos, bons, sinceros e verdadeiros. Nada falso, nada fake em seus trabalhos. Tudo é uma visão profunda, íntima e necessária do Brasil, dos brasileiros.

Mas o trabalho dos curadores foi tão fundamental quanto as exposições.

No de Claudia Andujar a imersão em seu trabalho permitiu visualizar os Ianomamis e seu percurso secular de luta pela sobrevivência e por seu território no Brasil dos brasileiros que odeiam os índios, mas evidencia também a vida extraordinária de Andujar, uma suíça naturalizada brasileira que se funde com a vida dos Ianomâmi. Ali, na exposição vemos eclodir não apenas a obra fotográfica de uma artista ímpar, mas o compromisso ético e político de uma mulher que assumiu a causa indígena como a sua própria e teve papel decisivo na luta pela demarcação das terras Ianomami, hoje, mais uma vez ameaçada pelos garimpeiros e pelo governo federal.

Essa articulação entre a vida de Andujar e seu trabalho com as imagens produziu uma exposição interior que empurra o visitante a olhar uma e muitas vezes para os olhares que, luminosos, saltam das fotografias numeradas para indagar se o que especularmente vemos é um número ou uma pessoa; um outro humano que quer morada em nosso olhar e em nossas representação do que somos e de quem somos ou uma população estranha por sua radical brasilidade e que não compreenderemos jamais.

O curador Thiago Nogueira em seu comentário sobre a exposição explica que durante os preparos de abertura da exposição ocorreu o segundo turno das eleições e, assim, a exposição transformou-se de uma exposição individual de uma artista destacada para um chamado de alerta e urgência sobre as sobrevivência dos indígenas no Brasil e dos Ianomâmis em particular.

No tempo largo que se pode apreciar o trabalho de Andujar e conviver intimamente com os olhares, gestos e sons dos Ianomami, emerge a necessidade de conhecer mais as relações de pertencimento entre os brasileiros que não convivem, não se conhecem e aceitam docilmente que os primeiros brasileiros não são brasileiros, mas uma forma estranha, não civilizada e que atrapalham o progresso dos investidores, latifundiários, garimpeiros e mineradoras. A quem interessa continuar exterminando e ameaçando os indígenas?

A quem interessa denominar as reservas de latifúndios senão aos próprios latifundiários, grileiros, garimpeiros e grupos de mineradores?

A quem interessa acabar com o que há de mais autêntico e sustentável na vida e na cultura brasileira?

A exposição Andujar, já antecipava essas respostas enquanto ela, juntamente com outros ativistas e índios lutava pela demarcação das terras Ianomamis. Durante quarenta anos Claudia Andujar constituiu sua obra, seu ativismo e sua vida e elas estão todas expostas no IMS. Hoje é um dever cívico ir à exposições como essa.

A Millôr o que é de Millôr

Em outra galeria no mesmo IMS veremos a exposição de Millôr Fernandes. Suas charges, desenhos, frases para um Brasil que se repete e nunca se supera. Sarcástico, direto e sem hesitação revela que no Brasil do ocaso o humor é peça chave, fundamental e inadiável.

De forma nada aleatória as duas exposições se adensam em diálogo pela voz das imagens inéditas, inventivas e instauradores as vozes e as origens de um povo, ou melhor, de um povo que ainda não compreendeu suas heranças e origens e, portanto, constantemente tropeça no que de pior lhe é oferecido política, social, cultural e subjetivamente.

Os impasses que nos definem, as heranças valiosas que constituem nosso erário, que as respectivas obras desses dois artistas tão bem representam-se as lutas que nos definem, definem quem somos e o que é e poderá vir a ser o Brasil.

Não é igualmente sem propósito que o título da exposição de Claudia Andujar é A Luta Ianomami. A luta secular, perpétua que jamais termina e para a qual, no Brasil, não há descanso.

A luta Ianomami representa a desidealização de um país onde as lutas findam e aponta para uma continuidade, ela mesma definidora de nossos ideais e de nossas marcas mais fundamentais. No Brasil as lutas não tem termo, jamais terminam. A luta Ianomami seria em tradução simples A luta do ser humano (Ianõmami Thepe). Claudia, hoje com 87 anos e Millôr, falecido em 2012, deixam enorme herança e estendem o braço para aqueles que pegarão o bastão, após imensas distâncias percorridas, para o seguimento das batalhas vindouras e o desafio de fazer cultura num país onde exposições, performances e obras são coagidas, proibidas e vulgarizadas.

O IMS se apresenta hoje, nem bem iniciado o novo governo, como parceiro das lutas democráticas, das obras e autores que as representam e do público, a quem cabe a tarefa de prestigiar e legitimar o belo trabalho que o IMS vem fazendo desde sua inauguração na principal avenida da capital paulistana.

Corra! Millôr até dia 27 de janeiro. Claudia Andujar, um pouquinho mais, vai até abril de 2019.