Três anos, cinco jovens e cento e onze tiros – Por Bruno Fedri

Três anos, cinco jovens e cento e onze tiros.

Há três anos, os amigos Carlos, Roberto, Cleiton, Wilton e Wesley, com idades entre 16 e 25 anos, saíram pelas ruas da comunidade de Costa Barros, região norte do Rio de Janeiro, para comemorar o primeiro salário de Roberto. Foram surpreendidos por policiais militares, que realizaram cento e onze disparos na direção do veículo, matando todos os seus ocupantes.

A chacina de Costa Barros, como ficou conhecida nacional e internacionalmente, evidenciou as mais profundas chagas da violência urbana que ocorre no território brasileiro e que fez, só no ano de 2017, mais de 60 mil vítimas, dentre muitas delas jovens negros, principais vítimas da violência de Estado.

Aqueles e aquelas que ficam, por sua vez, correm sérios riscos de perderem-se na invisibilidade que assombra milhares de vítimas indiretamente afetadas pelos crimes contra a vida. São os familiares, especialmente as mães, que dão início a um tortuoso e incerto percurso rumo a justiça, apostando encontrar, junto à condenação de seus autores, uma forma de restituição da imagem e semelhança do filho descaracterizado pela violência.

Atualmente no Brasil não existem políticas regulamentadas para formalização de uma política pública de atendimento às vítimas de crimes contra a vida. As políticas de segurança pública, em concordância com as propostas apresentadas por diversos candidatos à presidência e governo nas últimas eleições, reforçam o caráter revanchista e punitivo no combate ao crime ao passo de desconsideram qualquer possibilidade de criação de espaços de assistência e apoio às vítimas, que sirvam de mediadores para auxiliá-las a transformarem suas lutas e sofrimentos em busca por justiça e exercício de cidadania.

Além disso, a criação de centros de direitos humanos capazes de acolher os familiares das vítimas de crimes contra a vida encontra entraves significativos frente à resistência de representantes do poder público, que tendem por vezes a compreender que a criação destes espaços pode vir a favorecer o desenvolvimento de estatísticas de violência que venham a macular a imagem de seus municípios. Violência combatida pelo mecanismo primitivo da negação, capaz de sucumbir facilmente à irrupção do próximo crime.

Sem poder contar com estes espaços, as vítimas indiretas de crimes contra a vida deixam de contar também com suas próprias vozes. Portam uma história de sofrimento singular que se apresenta como insuportável aos ouvidos alheios. Sofrem repreensões dentro e fora de suas casas, por meio de amigos e familiares, com o objetivo de não mais falarem mais sobre o filho que partiu, sendo cobradas inclusive quanto ao tempo em que deveriam ter superado tamanha dor.

No caso dos jovens assassinados em Costa Barros, a inexistência de assistência pode ter favorecido ao aumento do número de vítimas desta chacina. Jozelita de Souza, mãe de Roberto, veio a falecer de depressão dois anos depois do crime.  Mais uma vítima da violência de Estado que desarticula cidadão e cidade, decidindo qual vida vale mais e qual vale menos.

O resultado das últimas eleições não apresentam horizontes favoráveis para as vítimas da violência urbana. A queda no número de parlamentares sensíveis às políticas sociais e aos direitos humanos somada ao recrudescimento dos discursos de ódio e a defesa despudorada da tortura trouxeram maior sofrimento aos familiares das vítimas de crimes fatais, especialmente para as mães, já estigmatizadas pela violência policial. Temendo discriminação, não raro são relegadas ao silêncio próprio do isolamento, comprometendo cada vez seu contato com seus amigos, vizinhos e tudo o mais que se caracteriza como sua cidade.

Algumas vítimas, no entanto, quando conseguem acolhimento em um centro de referência especializado, encontram junto às outras vítimas uma possibilidade de elaborar a violência sofrida. Contando e escutando histórias sobre suas vidas com seus filhos e as consequências que o homicídio deles lhes trouxe, passando uma caixa de lenços de mãos em mãos para enxugar as lágrimas que antes não encontravam lugar para cair, elas se auxiliam e trocam alternativas para aliviar a dor.

“Somos todas vítimas de um naufrágio”, foi como se apresentaram uma vez. Demonstraram a importância do rompimento do ciclo de violência para o estabelecimento da lei e da justiça, quando opinaram a cerca do resultado das últimas eleições:

“Não acreditamos na pena de morte. O discurso deles (dos eleitos) é o mesmo discurso que vitimou os nossos filhos”.

Vítimas de violência cuja resistência se expressa em não enveredar por caminhos de violência, rompendo ciclos e recriando laços. Este é um dos direitos fundamentais dos familiares das vítimas da chacina de Costa Barros, cujos tiros infelizmente continuam a ecoar.

 

Imagem: “O Paradoxo do Direito para Negros e Negras” – Jornal Jota. 09/12/2015. Fernando Frazão. Agência Brasil.