São muitas as imagens de horror que estamos vendo: racismo, violência, intolerância. Pelo que temos visto, não adianta adicionar mais uma imagem à série, na esperança de que o sujeito, diante deste horror, grite um Pare!! Chega!!. Isto não me representa!! Pelo contrário, tenho assistido atônito, justamente o contrário. A cada nova imagem uma reação do tipo “não estou vendo, o que estou vendo.” Todos sabem o quanto a história teve que reconstruir suas narrativas a partir de restos silenciados pela morte. Nem sempre estamos a altura do tempo que vivemos. Por isto, não tem sido suficiente colocar diante dos olhos mais uma imagem do horror. Que tempo é este, que país é este onde fatos não estão contando? O que conta então?
Para tentar pensar esta pergunta me lembrei do ensaio de Susan Sontag “Diante da dor dos outros” (Companhia das Letras). O que aconteceu com nossa percepção quando não nos afetamos mais com a crueldade sofrida por um semelhante? Como na gravura de Goya, da série Os desastres da Guerra, alguns assistem, até com um certo deleite, o desespero da vida ameaçada diante dos seus próprios olhos. Não foi assim que este país produziu,assistiu, sustentou, justificou , por tanto tempo, uma história da escravidão, uma espinha na garganta ainda viva na alma desta nação?
Sontag é categórica neste ponto lembrando que não sofrer diante destas imagens de horror, não sentir repugnância diante delas, não lutar para abolir o que causa este morticínio, seriam reações de um monstro moral.
Para não ver o monstro que alimentamos dentro de nós, negamos a percepção. Mecanismo psíquico que institui o slogan repetido centenas de vezes a cada nova imagem que desafia a consciência: “eu sei, mas mesmo assim…”. Sabemos bem, que inventamos artifícios para justificar o injustificável. A pauta ética e moral está no centro do debate político de hoje. O assustador é que até o argumento da ética é utilizado para não ver o que estou vendo. Tudo parece valer: coloco meus princípios no bolso para continuar me olhando no espelho. Mas o pior, nem é isto, é querer quebrar o espelho do vizinho. Sim, cada um tem direito de escolher a imagem que o representa, mas ninguém tem o direito de, explicitamente, querer eliminar, erradicar, exterminar, o que faz sombra a sua imagem.
A placa foi quebrada, mas não vi o que estou vendo, Marielle foi covardemente assassinada, mas não vi o que estou vendo, Mestre Moa também foi assassinado, mas não vi o que estou vendo, ele disse que ensinou seus filhos a atirar com armas de verdade aos 5 anos de idade, mas não vi que estou vendo, ele diz que Ustra é seu herói mesmo que tenha assassinado no Doi-Codi sob sua coordenação 47 brasileiros, mas não vi o que estou vendo, que usa o auxílio moradia para um apartamento para comer gente, mas não vi o que estou vendo, ele diz “eu fui num quilombo e o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”, mas não vi o que estou vendo, que a pedagogia de Paulo Freire precisa ser eliminada das escolas (o que me faz lembrar o livro de Ray Bradbury e o filme do François Truffaut Fahrenheit 451 ), mas não vi o que estou vendo, etc e etc e etc e etc e etc…
A percepção parece inabalável, mas a história virá cobrar seu preço. O momento anuncia um revisionismo assustador. Os jornais do mundo inteiro estampam manchetes vergonhosas sobre o Brasil, mas não quero ver o que estou vendo. Prefiro não ver tem sido o lema. Sim, se esta for a escolha da maioria afundaremos juntos e tudo indica que teremos um país que promete ser mais triste, deselegante, áspero, racista, desigual e que vai virar as costas para a crítica, para os excluídos, para o pensamento livre, para a arte irreverente, para a poesia, para a música sem métrica, enfim , para EROS. Robert Musil, (Ver o Homem sem qualidades) talvez chamasse tudo isto de estupidez. Finalizo com Musil e lembro a abertura de uma conferência que fez em Viena, em 1937 intitulada “Da Estupidez”.
Senhoras e Senhores:
“Quem quer que se decida a falar da estupidez corre hoje o risco de ser insultado: podem acusá-lo de pretenciosismo ou de querer perturbar o curso da evolução histórica. Eu próprio escrevi já há alguns anos: “ Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estupido.”
Na imagem abaixo a água-forte “Tampoco” prancha nº 36 de LOS DESASTRES DE LA GUERRA, (1810-1820) de Francisco Goya.