O incêndio que destruiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro atingiu o âmago do ser de todos os que se sabem humanos, ou seja, seres da cultura, da história, das artes e das ciências. Atingiu em cheio nosso estado de civilização, nossa condição de seres de linguagem e sublimação, nosso particular de criadores que nos diferencia de outros seres vivos. Atingiu nossa humanidade. É um desastre inominável para homens e mulheres enquanto seres-para-a-arte, caminhando pela Terra como poetas e transformando o mundo com inteligência e desejo..
Esse incêndio convoca uma pletora de significações pela destruição de 20 milhões de peças e documentos e de noventa pesquisas em curso em um palácio magnífico mantido por uma universidade pública.
Eis o que constatamos como símbolos atuais de nossos tristes trópicos:
– a queima do bem público;
– o eliminação da história brasileira;
– a destruição da independência do Brasil (lá estava o documento histórico);
– a revogação da abolição da escravatura (lá perdurava a assinatura da lei Áurea),
– o apagamento da pré-história da humanidade (lá estava nossa Luzia)
– a eliminação da ciência;
– o ataque terrorista à universidade pública;
– o extermínio das artes, das tradições e do saber;
– o apagamento de nossas origens.
O palácio desencantou e ruiu. Fomos atingidos no cerne de nossos valores, no amor por nossas coisas, no nosso amor-próprio, em nossa soberania, em nosso desejo, em nossa beleza, em nossa força. O Brasil foi mortalmente ferido.
Na Alemanha de Hitler, os nazistas empreenderam uma queima espetacular de livros em todas as cidades. A lista negra incluía Freud, Marx, Kafka, Einstein e Brecht. “Na Idade média, disse Freud, teriam queimado a mim, hoje eles se contentam em queimar meus livros”. Mas em seguida foram efetivamente queimados milhares de pessoas. O que há de semelhante ontem e hoje? Naquela época esses homens que contribuíram com nossa humanidade foram perseguidos e suas ideias atacadas.
Hoje no Brasil há um ataque sistemático a homens e mulheres (Não é, Marielle?) cujas ideias ameaçam a nova ordem mundial neoliberal capitalista segregacionista cada vez mais violenta com o desprezo pela memória e história; pelos laços e conquistas humanitárias. É um ataque ao humano, ao homo sapiens, que nossa “civilização” vai transformando, via segregação, em homo sacer (homens matáveis).
Qualquer que tenha sido a causa imediata do incêndio do Museu nacional, esse incêndio foi criminoso. Descaso, desinteresse, negligência seja o nome que for, o que houve foi um assassinato do bem simbólico, uma matança cultural, o extermínio do Inconsciente.
O inconsciente é o capítulo censurado de minha história, segundo Lacan, cuja verdade pode ser resgatada nos monumentos (meu corpo), nos documentos de arquivo (lembranças de infância), na evolução semântica (vocabulário, estilo de vida) e tradições (minha história com suas lendas). Ao aplicarmos esta concepção ao país, foi perpetrado um ataque ao Inconsciente do Brasil, uma queima de arquivo. Lá onde sua verdade histórica poderia ser resgatada, não há mais traços nem vestígios. A via para as fake newsda história está aberta.
Esse incêndio foi como carta marcada que chegou a seu destino, uma tragédia tantas vezes anunciada e temida. E chega como uma bomba atômica arrasando o registro deixado – em princípio para a eternidade – do que teria sido a humanidade no Brasil. Um golpe terrível para o sujeito da história, sujeito do direito e sujeito do desejo.
Para além de todas as significações e símbolos, esse incêndio foi um advento do real, sem sentido algum que possa aplacar a dor. Trata-se do real, em sua definição lacaniana, do que é impossível de suportar, impossível de simbolizar. Advento do real que sempre retorna ao mesmo lugar. Que lugar? Os incêndios de nossas museus e monumentos (MAM do Rio, Memorial da América Latina em São Paulo, Reitoria da UFRJ, Museu Hélio Oiticica, etc) que o digam. A queima de arquivo é uma repetição.
Esse desastre lembra as cartas de amor de André Gide queimadas por Madeleine – ato que provocou um sulco no ser do autor do qual ele jamais se recuperaria. As chamas cavaram um vazio em nosso ser como brasileiros. Esse oco não há como ser preenchido. O Museu Nacional era uma carta de amor que nos deixaram tantos homens e mulheres de agora e de tantas épocas e tradições. Essa carta se queimou. Só o trabalho de luto nos dirá que destino podemos dar a esse vazio. Restou o meteorito. O que ex nihilofaremos com as cinzas e o pó? Ou mantemos nossa dignidade de criadores ou desprezamos nossa humanidade como criados da barbárie. O meteorito será nossa testemunha.
Rio de Janeiro, 3 de setembro de 2018.
Antonio Quinet, psicanalista