Todos os dias eu acordo com a vibração do meu celular, e durmo com a luz forte do prelúdio de um horário pontual que me desperta vindo do mesmo. Cíclico e cotidiano todo dia um novo despertar, um vibro diferente. Todos os dias eu acordo e observo os eletrônicos em nossa volta, e tenho uma maldita pulsão de vê-los por dentro. O íntimo velado. Esses todos dias, já me acompanham faz um tempo.
Albert Einstein disse: “Tudo é vibração” ao explicar os sistemas complexos, desde os átomos até a construção de partículas em relação ao espaço, tempo e o nosso próprio corpo. Partindo desse princípio, a discussão proposta neste texto interage com as áreas de artes visuais e psicanálise no que tange o entendimento do nosso atual momento de pós mídia, em que a arte digital[1] segue em busca de espaço para diálogo e propõe diferentes experiências sensoriais, entre elas, a sinestésica.
No processo criativo de construção dos meus últimos trabalhos que envolvem tal estética tecnológica, busquei através do desmonte de objetos eletrônicos, catalogar seus diferentes mecanismos de hardware quando encontrei e me familiarizei com os sistemas vibratórios.
Qualquer sinal de vibração possui três qualidades: deslocamento, velocidade e aceleração, que estão inextricavelmente ligados. Segundo o livro “Human Response Vibration”, de Neil J. Mansfield:
A vibração é um movimento mecânico que oscila sobre um ponto fixo (geralmente uma referência). É uma forma de onda mecânica e, como todas as ondas, transfere energia, mas não importa. A vibração precisa de uma estrutura mecânica para viajar. Esta estrutura pode ser parte de uma máquina, veículo, ferramenta ou mesmo uma pessoa, mas se um acoplamento mecânico for perdido, a vibração não se propagará mais.(MANSFIELD, 2005, p.20).
O motor vibratório reverbera movimento no seu estado de “inércia”. É preciso para seu funcionamento, que a peça esteja em uma cápsula protetora para a propagação de movimento. Logo, é necessário fisicamente enclausurar o corpo do objeto, permitindo o giro apenas de sua cabeça, em um berço milimetricamente confeccionado.
Berço que aprisiona, berço que acolhe. Por vezes questiono o papel da tecnologia: será ela é libertária? Em qual sentido? A partir do momento em que precisamos de poderes aquisitivos e capitalistas para adquirir suas peças, em que os objetos se distribuem sem igualdade pelas camadas socioeconômicas; a tecnologia está envolta por um endométrio consumista e é possível criarmos trabalhos que dialoguem com isso.
Em 2013, ao estudar o conceito de Don Tapscottnativos digitais[2], passei a incluir meu lugar de autoria como nativa, e não imigrante digital, me apropriando do conceito após a construção de uma esculturaque se intitula Berço” como ilustram as imagens abaixo.
RosalindKrauss no texto “Balés Mecânicos: Luz, movimento e teatro”, comenta a tese de Burnham, especificamente sobre o desenvolvimento paralelo dos autômatos e computadores, em que a tentativa de simulação das máquinas enquanto organismos vivos, fora focada no âmbito da inteligência artificial. E mais ainda, que os artistas da escultura cibernética e os cientistas compartilharam a vontade de criar objetos da ordem natural com o objetivo inconsciente de controlar o destino humano: “A máquina, obviamente, é a chave dessa transferência de poder. Se ela constrói nosso destino, pode no mínimo, tornar-se o veículo por cujo intermédio nossa arte se realiza”. (BURHAM, apud. KRAUSS, p.251).
A estética que proponho possui um outro foco que inclui a reutilização da tecnologia obsoleta. Não criando máquinas de inteligência artificial (ligadas ao desenvolvimento automatizado de respostas), e sim para máquinas de inteligência sensorial, uma confecção artesanal quando se trata da manufatura do objeto. Após a catalogação das peças, essas são soldadas e posicionadas de forma específica no que tange à transparência do objeto escultórico e no circuito elétrico que é soldado em cada ponto de conexão.
Dentro da discussão sobre os motores obsoletos, que intitulo esse novo texto, apesar da ambiguidade em entender que o movimento pede pausa, não me refiro ao deslocamento. É preciso parar um pouco nosso pensamento velocitado, para reconhecer essas novas formas de interação e valorização do nosso corpo que tem sido esquecido. Corpo esse pós-digital, pois já estamos vivendo dentro desse contexto das tecnologias digitais. Dedos esses, em diálogo com telas touchscreen em imagens virtuais de corpos cada vez mais públicos. Incorporamos nosso ser-mente-corpo, no momento pós mídia.[3]
Milton Sogabe, artista, integrante da Equipe Interdisciplinar SCIArts e professor da UNESP, vai analisar os projetos de instalações interativas, trazendo seus elementos como espaço, evento, dispositivo, interface e o público:
O público não é mais considerado apenas um ser visual, ou um ser pensante, ou um ser ouvinte, mas sim um ser que possui um corpo, com um sistema sensório complexo, que funciona percebendo o ambiente de acordo com sua memória e sua cultura. As sensações corporais, presentes só num parque de diversões, podem estar também presentes nessas obras e não só as sensações visuais, sonoras ou a reflexão. Consideramos que estamos num contexto em que a obra não segue mais o paradigma da eliminação de elementos, mas sim a somatória, a reintegração do que foi separado. A participação das sensações corporais não pode ser pensada como um impeditivo para a reflexão, ou como elementos separados.” (SOGABE, p. 66, 2010)
Na proposta do trabalho “Massageador de Angústia” foi criado um totemvibratório em que o público é convidado a se acoplar à máquina, podendo optar por diferentes sensações através dos botões: “Digerir”, “Amenizar” e “Esquecer”. Além dos botões a peça conta com um regulador de altura para a democratização do acesso físico ao trabalho e um adesivo vinílico preto colocado no espaço onde devem ser posicionados os pés para fruição do trabalho.
https://www.youtube.com/watch?v=BTbXqCeXP44
Ainda que primordial, proponho uma discussão a partir de tais nomenclaturas enunciadas de forma direta no trabalho, com o texto do Freud “Recordar, repetir e elaborar”:
Deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para superá-la, pela continuação, em desafio a ela, do trabalho analítico segundo a regra fundamental da análise. Só quando a resistência está em seu auge é que pode o analista, trabalhando em comum com o paciente, descobrir os impulsos instintuais reprimidos que estão alimentando a resistência; e é este tipo de experiência que convence o paciente da existência e do poder de tais impulsos. (FREUD, 1914/1996, p. 202).
Paciente e público, ao propor um “Massageador” de angústia, muitas vezes pode amplificar o sentimento antes de massageá-lo. Não ousaria dizer o que as pessoas sentirão, ao se acoplarem as minhas esculturas eletrônicas. Confesso que já vi lágrimas e sorrisos. Mas posso dizer o que esse corpo passou até chegar no momento de pedir um pouco de pausa.
Lacan no “Seminário sobre angústia” de forma indireta nomeia a angústia como uma via não significante, concebida biologicamente, sociologicamente e culturalmente, estando ligada a tudo que pode permanecer no lugar, na finitude da nossa própria falta, sujeito do inconsciente:
Simplesmente os farei observar que muitas coisas podem produzir-se no sentido da anomalia, e que isso não é o que nos angustia. Mas se de repente, faltar toda e qualquer norma, isto é, tanto o que constitui a anomalia quando o que constitui a falta, se esta de repente não faltar, é nesse momento que começará a angústia. Tentem aplicar isso a uma porção de coisas. (LACAN, 2005, p.52).
Angústia é trazida não como uma emoção ou um sentimento, e sim como um afeto, da ordem da perturbação. Um afeto que não engana e orienta possíveis dissoluções de pensamento. Faz pensar.
As sensações vibratórias nos rodeiam para além dos motores vibracall dos celulares e dildos de prazer. Vivemos imersos em transportes vibratórios, assentos, sinais sonoros, ruídos que atravessam nosso cotidiano, atravessam o nosso corpo. E existe toda uma angústia que permeia uma espera ansiosa. A rapidez com que colocamos nosso estado de comunicação nos leva a canais de acesso, entre uma sensação expectativa de um retorno e o disparador de um sentimento de inquietude.
Tais encantamentos afetivos são projetados nesses objetos de desejo, em necessidades criadas pelo consumo. A tentativa de projetar objetos transparentes, não maquiados por caixas pretas, também está em ter acesso às vísceras da tecnologia, revelando a harmonia de quem entende cada detalhe do seu projeto constituinte, ou o próprio íntimo de quem as faz e de quem as usa todos os dias.
Aqui a experiência de contemplação visual finda antes do acoplamento com o trabalho, pois acredito que a compreensão visual nos tira a autenticidade da experiência dessas máquinas tácteis. Dentro desse aspecto, há uma tentativa de bloquear a visão do “interator” no momento em que se está interagindo com o objeto. Enquanto acoplado, visualmente ele só poderá contemplar o ambiente em sua volta.
Penso que esse trabalho pode dialogar com utopia na luta de um retorno ao nosso próprio corpo. Um convite a uma pausa trêmula, no aconchego de um ruído grave e inconstante. Um retorno ao sensível, a uma experiência estética sensorial e sinestésica, deslocando o corpo de sua unidade de equilíbrio.
Outra relação possível seria essa valorização do ruído, a amplificação do vibratório. Destaco aqui as inúmeras pesquisas desenvolvidas em tecnologia anti-vibração, a batalha pelo eletrônico silencioso e ateoria do professor alemão Christian T. Haas que traz a vibração maquínica como algo ruim. Mas, me dedico nesse momento, à vibração como princípio de prazer.
Rotações utópicas e o devir máquina
Paul Beatriz Preciado no livro “Manifesto Contrassexual” traz um pouco sobre a história dos dildos e instrumentos vibratórios em seu contexto de criação especificamente para dois espaços terapêuticos da histeria: a cama matrimonial e a mesa clínica, entendendo as primeiras terapias de titilação eram manuais e os médicos nem sempre as consideravam recompensadas por crises histéricas:
O vibrador aparece como instrumento terapêutico da história pouco depois, em 1880, exatamente como uma mecanização desse trabalho manual. O vibrador Weiss, por exemplo, era um aparelho eletromecânico que procurava massagens rítmicas tanto do clitóris e da região pélvica como de outros músculos que eram objeto do tratamento por vibração. Essas “máquinas sexuais”, que identificarei como estruturalmente vizinhas do dildo, existem em uma zona intermediária entre os órgãos e os objetos. Assemelham-se de maneira instável, sobre a própria articulação natureza-tecnologia.” (PRECIADO, 2014, p.96 – 111).
Apesar da mudança de significado que estes objetos de desejo tiveram, em detrimento inicial, a articulações terapêuticas esquisitas, e, no momento atual, como objetos eletrônicos sempre fora a serviço do prazer sexual à eventos estéticos. Se interpretarmos a teoria do Objeto A, explicado por Lacan no Seminário X, no ato sexual quando o vibrador entra em cena, a máquina torna-se a pessoa e o prazer torna-se a máquina, intercambiando seus estados de princípio, invadindo as fronteiras do cibercorpo.
Projetar neste caso uma experiência sensória, pode ser por vezes invasiva. Mas como questionar o corpo do outro sem, de certa forma, invadi-lo? Toda essa proposta artística, permeia invasão, permeia o entrar em um status e subvertê-lo de forma estranha. Seria esse o devir máquina de um motor vibratório? Um saber que parte do corpo ainda não foi explorado.
Nas artes visuais, a maioria dos exemplos que encontramos é relacionado a vibração sonora e o ruído. Como é o caso do artista Zimoun, que irá propor diferentes instalações que fazem uso de conjuntos de motores vibratórios, criando experiências sinestésicas, a partir do lugar de escuta.
Luigi Russolo deve sua importância no desenvolvimento no conceito de ruído como arte, criando diversas máquinas de barulho:
Cada manifestação de nossa vida é acompanhada pelo ruído. O ruído é portanto familiar ao nosso ouvido e tem o poder de evocar imediatamente a própria vida. […] Temos certeza então, que selecionando, coordenando e dominando todos os ruídos, enriqueceremos a humanidade com uma nova delícia insuspeitada. (RUSSOLO, 2009, p.4).
No livro “Palavras para Nascer a Escuta Psicanalítica na Maternidade” de Myriam Szejer traz que:
Bem antes de haver um sistema auditivo funcional – para isso é preciso esperar o terceiro trimestre da gravidez -, a criança consegue reconhecer e discriminar as vibrações acústicas repercutidas pelo líquido amniótico. Os haptoterapeutas dizem as vezes que ela – “escuta com a pele”. (SZEJER, Myriam, 1997, p. 80)
Acredito que o “Massageador de Angústia” está dentro destes conceitos de transposição e/ou transferência da reação vibratória primordialmente uterina, hoje no que vibra, um convite a escutar com a pele.
O tempo de espera, o tempo de pausa, tornou-se o tempo de conexão, a partir do momento que a inércia desse corpo nosso, presente, pós virtual, chama o braço esticado que agarra o aparelho e comanda com os dedos.
Esse ensaio não se propôs então a discutir sobre controle, e sim sobre quais são os comandos maquínicos possíveis ou já instaurados na nossa pele sensível e pouco explorada.
O que vibra então dentro de ti? Quais partes do cotidiano velocitado pode de fato nos equalizar? Gerar calma? Será uma possibilidade de combater esse achatamento sensorial, proporcionar o que chamo de fruição vibratória? Não sei. Mas sei, que acordo todo dia com o som da vibração do meu celular.
Caixas transparentes, berços, fios coloridos que levam energia, veias que transportam sangue; corpos separados e conectados por telas que comandam dedos. Espero que algum dia possamos entender essa angústia, veloz ansiedade, de um corpo a outro, do meu corpo para o teu corpo.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914) In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
JANA, Reena. TRIBE, Mark. New Media Art. São Paulo: Taschen, 2007.
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo, Martins fontes. 1998.
LACAN, J. Seminário X, A Angústia (1962-63). Rio de janeiro, Jorge Zahar Ed., 2005.
MANOVICH, Lev. The Language of New Media. London: MIT Press, 2001. ____________. The Death of Computer Arte.Rizhome, 1996.
____________. Understanding Hybrid Media. In: BUCHAN, Susan. Animated Painting | Exhibition Catalog. San Diego: San Diego Museum of Art, 2008.
MANSFIELD, N.J. Human Response to Vibration, CRC Press, Boca Raton, 2005.
PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. Políticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.
SZEJER, Myriam. Palavras para nascer: a escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 1997.
SOGABE, Milton.Instalações interativas mediadas pela tecnologia digital: análise e produção. SCIArts. Metacampo, Itaú Cultural, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/viewFile/52785/56628
TAPSCOTT, Don. Growing up digital: the rise of net generation. New York: McGrawHill, 1998.
Notas
[1] New Media Art e outros nomes categóricos, como <Arte Digital>, <Arte de Computador, Arte Multimídia e Arte Interactiva são utilizados muitas vezes alternadamente, […] utilizamos o termo para descrever projectos que fazem uso das tecnologias emergentes e se preocupam com as possibilidades estéticas, culturais e políticas destas ferramentas. (JANA, TRIBE. p. 6, 2007).
[2]Ver TAPSCOTT (1998).
[3]Ver MANOVICH (2008).
Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem realizado em dezembro de 2017 pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política (LAPPAP/UFRGS) e PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), em Porto Alegre/RS.
Sobre a autora: Joana Burd é artista visual, mestranda em Poéticas Visuais na UFRGS. Graduada em Artes Visuais (UFRGS), concentra sua pesquisa no diálogo entre escultura, mídias digitais e tecnologia. Seu trabalho interage com a área das novas mídias a partir do ponto de vista de uma Nativa Digital. Trata-se de investigação poética e teórica sobre nosso envolvimento com a tecnologia, em um plano moral e afetivo.