O Vulgar em Haruki Murakami. Agulha nº 11 – Por Alice Sippert

O Vulgar em Haruki Murakami. Agulha nº 11 – Por Alice Sippert

Haruki Murakami atualmente é um dos mais conhecidos escritores japoneses; seu nome, está ao lado de autores tais como Yukio Mishima, Kenzaburo Oe e Yasunari Kawabatta. Entre suas principais obras estão: Caçando Carneiros (2001),  (2014), 1Q84 (2012), O Incolor Tsukuru(2014).

Criticado pelo tradicionalismo japonês[1], seu estilo literário é complicado de ser definido. Neste breve comunicado, compartilharei algumas reflexões sobre as diferentes inflexões da palavra vulgar em sua obra.

 

O dicionário Priberam define a palavra “vulgar” como:

 

  1. Do vulgo, da plebe.
  2. Baixo, ínfimo, ordinário.
  3. Que não tem nada que o faça destacar-se
  4. Relés, de nenhum valor.
  5. Trivial.

 

Murakami utiliza diversas facetas dessa palavra. Considerado um autor vulgar, posto que “popular”, ele não se identifica com a vertente estritamente monetária da literatura. Seus livros, diferente dos tão falados best sellers, não produzem narrativas que apelam a um verborreico suceder de imagens em ação frenética. Muito pelo contrário; neles, o vulgar adquire a estética de acontecimentos corriqueiros que, por motivos diversos, adquirem valor diferenciado. Para o autor, cada uma dessas trivialidades possui autêntica energia potencial; é sobre estas que, retomando Didi-Huberman(2015), o olhar pode debruçar-se como resultado de uma vista abrangente[2].

Seja o sumiço de um gato como nas Crônicas de um Pássaro de Corda (2017), a perda de um trem em Após o Anoitecer (2009) ou até mesmo uma insônia como em Sono (2015), o vulgar sofre uma autêntica operação de transmutação; torna-se estranho (em sua dimensão familiar) à personagem que a experimenta.[3] É neste choque em que algo de fora interpela o sujeito desde suas tripas que a história contada recai como autêntico resíduo de uma operação singular.

Esta dimensão do vulgar pode ser experimentada com um pequeno exercício. Certa vez, empenhando-me em tentar comunicar para uma pessoa querida a intensidade dessa produção literária (bem como persuadi-la a engajar-se na leitura do autor em questão), abri aleatoriamente meu exemplar de O Incolor Tsukuru (Murakami, 2014). Transcrevo aqui o que encontrei:

 

Tsukuru passou os dois dias restantes caminhando pela cidade de Helsinque sem rumo. De tempos em tempos caía uma chuva fina que não chegava a incomodá-lo. Caminhando, ele pensou em várias coisas. Havia muitas coisas em que precisava pensar. Antes de voltar a Tóquio, queria organizar os sentimentos. Quando se cansava de andar, ou quando se cansava de pensar, entrava em um café, tomava café e comia um sanduíche. Perdeu-se uma vez, ficou sem saber direito onde estava, mas nem isso o incomodou. Não era uma cidade muito grande, e a linha do bonde passava por todo lugar. Além do mais, perder-se lhe dava uma sensação prazerosa naquele momento. Na tarde do último dia, foi à estação central de Helsinque, sentou-se num banco e passou as horas simplesmente observando os trens que partiam e chegavam. (Murakami, 2014, p.235)

 

Ante ao olhar interrogador estampado no semblante minha interlocutora — tão estranhada quanto eu com o tom aparentemente ‘banal’ com que as frases ligavam-se umas às outras — resolvi tentar novamente. Abri então Caçando Carneiros (Murakami, 2001). Minha lembrança era de que o livro possuía uma escrita repleta de acontecimentos — o que iria me auxiliar no objetivo de criar mais uma leitora do escritor nipônico. A busca pelo carneiro manchado, eixo central do romance, permanecia colorida e viva em minha memória como imbuída de um enredo alucinante. Vejamos:

 

Já tinha escurecido. Guardei alguns trocados, cigarros e isqueiro no bolso da calça, calcei um par de tênis e saí. Fui à lanchonete perto de casa onde como sempre e pedi milanesa de frango com pãezinhos. Enquanto preparavam, bebi mais uma cerveja ao som de um novo lançamento do Brothers Johnson. Comi a milanesa ouvindo Bill Withers e tomei café com “Star Wars”, de Maynard Ferguson. Acabei de comer, mas não me senti bem alimentado.(Murakami, 2001, p.189)

 

 

A pergunta para mim endereçada foi óbvia: — por que ele descreve tantos detalhes, tipo o que as personagens comem?

 

Nesse momento me vi completamente sem resposta! Minha tentativa de descrever a potência de Murakami fracassara por inteiro. Não me dando por vencido, anotei as páginas abertas ao acaso e passei a trilhar as linhas iniciais que resultaram neste breve escrito. Narrar a intensidade dessas obras tornou-se algo semelhante à tentativa de relatar os efeitos de uma psicanálise.[4] Como contar, por exemplo, que o esquecimento de uma palavra durante uma viagem de trem (tal como experimentado por Freud(1996)) possui em sua vulgaridade, em sua banalidade, a potência necessária capaz de levar alguém a reposicionar-se em sua própria realidade? Como sublinhar que uma agulha pode desativar uma bomba?

Num de seus mais recentes livros, Romancista como vocação (2017), Murakami retoma sua trajetória. Não propriamente buscando estabelecer os motivos que o levaram ao ofício, o autor busca em sua própria memória o momento em que decide escrever[5]. Retomando algo já narrado em seu O que Falo quando Falo de Corrida(2010), o japonês descreve uma cena curiosa. Recusando-se “sem intenção” a seguir o vulgar destino nipônico reservado aos jovens adultos (formar-se, casar, assumir um emprego em um escritório e morrer)[6], o romancista, junto com a sua esposa, coletou vários empréstimos em diversos bancos. Utilizando este capital, abriu um bar de jazz (sendo a música uma de suas paixões, também é um tema constante em seus romances). Prosperando após muito trabalho, certo dia, foi arrebatado por uma estranha sensação durante uma partida de beisebol. Inexplicavelmente, entre uma tacada e outra, um pensamento atravessou sua mente: posso escrever[7]. Assim, sentado em sua mesa no final do expediente, escreveu seu primeiro romance: Ouça a Canção do Vento (2016).

Assim como o psicanalista, cujo desejo que sustenta sua práxis encontra seu fundamento em sua própria experiência[8] de análise, temos a impressão de que Murakami tenta transmitir com sua produção algo desse efeito por ele vivenciado que o inaugurou na esfera literária. O sentido dessa partida de baseball, o porquê disso ter ocorrido, é o que menos importa. Podemos, inclusive, afirmar que a potência de tais acontecimentos reside justamente naquilo que escapa ao sentido.

 

O processo de criação deste primeiro texto é extremamente peculiar. Abandonando a caneta tinteiro que, em sua interpretação, davam-no uma postura literária (Murakami, 2017, p. 95), Murakami escreve-o primeiramente utilizando a língua japonesa. Traduz então para o inglês. Posteriormente novamente o converte para sua língua mãe. O motivo de tal operação era extrair a potência da limitação que era para ele escrever em uma língua estrangeira. Cito:

 

Como eu era um japonês nascido no Japão, e vinha usando a língua japonesa desde pequeno, o meu interior estava cheio de palavras e expressões em japonês. Quando eu tentava colocar por escrito o sentimento ou o cenário que havia na minha cabeça, as palavras e as expressões dentro de mim trafegavam a alta velocidade e acabavam colidindo. Mas isso não acontecia quando eu escrevia o texto em uma língua estrangeira, porque as palavras e as estruturas gramaticais eram limitadas. […] Resumindo, percebi que não havia necessidade de usar palavras difíceis nem belas expressões para impressionar as pessoas (Murakami, 2017, p. 101)

 

O campo do sem sentido é outra das constantes em Murakami. Sua obra mais famosa, a trilogia 1Q84 (2012), explora com propriedade tal elemento. O aparecimento inexplicável de duas luas convoca tanto leitor como personagens a suturar o estranho dentro do própria ficção do texto — convoca-nos à criar ou ao menos supor uma lógica para garantir a existência de um tecido que determine a solidez da realidade. O peculiar do surgimento das duas luas é a inexistência de um marco que ligue os dois mundos paralelos; não há uso de qualquer recurso que ofereça alguma acomodação para o leitor no que tange a essa transição.

Recursos que denotam essa passagem são comuns tanto na arte quanto na literatura. Didi-Huberman(2014) coloca em evidência a função da Grisalha em algumas obras de arte. Esse ato de reproduzir partes de uma imagem em tons acinzentados, segundo o autor, gera a impressão no espectador de que determinada parte pertence a uma esfera diferenciada — do sonho ou do sagrado por exemplo. Verificamos esse recurso até mesmo em livros infantis. Lembramos que História sem Fim (2013), por exemplo, é escrito em duas cores: uma para cada realidade. Murakami não nos oferece isso.

A vulgaridade com que são assumidas as luas  — seja pela ausência de uma passagem clara entre os dois universos, seja pela trivialidade com que elas são tratadas pelas personagens do enredo — passam a possuir um valor diferenciado: algo que irrompe sem qualquer aviso e permite de forma evanescente vislumbrar uma faísca de outra cena.

A leitura de Murakami também nos convoca a uma pergunta. Pergunta essa que servirá de encerramento desse texto. Podemos, ou melhor, autorizamo-nos, na vulgaridade de nossa rotina, no trivial de nosso quotidiano, a estranhar e reconhecer nesse estranhamento uma potência?

 

 

 

 

 

 

 

Referências

Caon, J. L. (1997). Serendipidade e situação psicanalítica de pesquisa no contexto da apresentação psicanalítica de pacientes. Psicologia: Reflexão e Crítica, 10(1), 105-123.

Didi-Huberman, G. (2014). Grisalha: Poeira e Poder do Tempo. São Paulo: KKYM

Didi-Huberman, G. (2015). Pensar Debruçado. São Paulo: KKYM

Ende, M. (2013). História sem Fim. São Paulo:Martins Fontes.

Freud, S. (1996). O estranho (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1919).

Freud, S. (1996). A psicopatologia da vida cotidiana (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 6) Rio de Janeiro: Imago.

Murakami, H (2009). Após o Anoitecer. Rio de Janeiro: Alfaguara.

Murakami, H. (2014). Kafka à Beira Mar Rio de Janeiro: LEYA.

Murakami, H. (2012). 1Q84. Rio de Janeiro: Alfaguara.

Murakami, H. (2001). Caçando carneiros. São Paulo: Estação Liberdade.

Murakami, H. (2017). Crónica do pássaro de corda. Rio de Janeiro: Alfaguara

Murakami, H. (2010). O que Falo quando Falo de Corrida. Rio de Janeiro: Alfaguara

Murakami, H. (2016). Ouça a Canção do Vento. Rio de Janeiro: Alfaguara

Murakami, H (2017). Romancista como Vocação. Rio de Janeiro: Alfaguara

Murakami, H. (2015). Sono. Rio de Janeiro:Alfaguara.

Bingo. Imagem disponível em https://www.google.com.br/search?q=haruki+murakami+bingo&rlz=1C1AWFC_enBR764BR764&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwjY2PPFsczaAhWCipAKHbw8AqkQ_AUICigB&biw=1707&bih=816&dpr=1.13#imgrc=N7DYIXLcHbeB-M:

Quinet,A. (1991) . As 4 + 1 Condições de Análise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Teixeira, J. (2004). Ouvindo a canção do vento. In: Revista Cult v(80), 7-13

 

 

[1]Críticos da velha guarda condenam a ocidentalidade da obra de Murakami e seu estilo inovador, rotulando sua literatura de frívola e contrapondo-a à literatura sólida de Oe, Tanizaki ou Mishima, os quais valorizaram a estética formal preconizada pela junbungaku. Tais críticos parecem no fundo recear o aspecto revolucionário da obra de Murakami de tentar subverter os parâmetros do elitista establishment literário japonês de dentro para fora. Uma revolução estilística que, diga-se de passagem, Murakami vem conseguindo brilhantemente alcançar ao quebrar todas as regras e correr altos riscos. (Teixeira, 2004)

[2] Didi-Huberman(2005) diferencia uma vista “sobrepujante” de uma vista “abrangente”. Para a primeira, o olhar utiliza um conjunto de saberes que o afastam do objeto; impedem com que aquele que olha seja afetado pela cena olhada. Por outro lado, a vista abrangente – poderíamos nomeá-la assim – debruça-se para ver melhor: dialetiza e abisma a própria distância. Deixa assim o objeto olhado subir em direção ao olho, quaisquer que sejam os riscos ou as consequências aferentes. (Didi-Huberman, 2005, p. 16)

[3] O “estranho” aqui referido é aquele trabalhado por Freud. Nele, […] o sinistro é o outrora doméstico, o familiar de antigamente. Nesse sentido, o prefixo ‘un’ da palavra unheimlich é a marca do recalcamento (p.244). Este estranhamento relaciona-se com o familiar justamente por remeter-se a um tempo subjetivo anterior.  […] sinistro é algo que, destinado a permanecer oculto, vem à luz (p. 241)

[4] Concordamos assim com Caon. O psicanalista está destinado a não poder compartilhar com outrem o ato psicanalítico da situação psicanalítica de cura. Todo seu trabalho, em princípio, é transmitido aos outros, no discurso cotidiano da comunicação e da compreensão. Geralmente, só os que passaram ou passam pela experiência psicanalítica, quer como pacientes, quer como psicanalistas, poderão ter um entendimento científico desse discurso, ao refundá-lo perante a comunidade dos pesquisadores científicos em geral.(Caon, 1997)

[5] É interessante pontuar que Murakami não decide “tornar-se” escritor. O desejo que o pôs em movimento centra-se no verbo e não em seus predicados.

[6] Acho que a maioria delas (das pessoas) se forma, começa a trabalhar e, depois de um tempo, se casa. Eu também pretendia levar uma vida assim. Ou, melhor dizendo, achava que a minha vida seria assim, pois esse é o curso das pessoas em geral. E (por bem ou por mal) eu não tinha praticamente nenhuma intenção de contrariar o senso comum. Mas, na prática, eu me casei primeiro, comecei a trabalhar por necessidade e, depois de um tempo, me formei. Ou seja, a ordem foi bem diferente da convencional. Esse foi o curso que eu tomei, ou, por assim dizer, foi o que acabou acontecendo. O curso da vida quase nunca segue o plano inicial.(Murakami, 2017)

[7] O som agradável do taco atingindo a bola ecoou em todo o estádio. Ouviram-se alguns aplausos. Nesse momento pensei subitamente, sem nenhum contexto e sem nenhum fundamento: É, talvez eu também possa escrever romances. (Murakami, 2017)

[8]A análise do analista permite que este suporte o empuxo que impele os falantes ao campo do sentido. Esta “força” materializa-se na constante pergunta “Quem Sou?” – jamais tamponada por uma resposta ou demandada como pergunta pelo psicanalista ao analisando:. O que permite ao analista abrir mão de sua condição de sujeito na condução da análise é o processo que em sua própria análise o levou à destituição subjetiva quando de seu término […] A destituição subjetiva corresponde à queda dos significantes-mestres que representavam o sujeito, significantes da identificação ideal advindos do Outro […]  Os significantes não cumprem mais a função de responder (tamponando) a questão do “Quem sou?” transmutada em “Que sou para o desejo do Outro?. (Quinet, 1991, p. 51)

Alice Sippert é psicóloga e mestranda no Programa de Pós Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura/UFRGS.

Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem realizado em dezembro de 2017 pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política/UFRGS e PPG Psicanálise Clínica e Cultura/UFRGS