O que se espera? Do que é feita uma espera? Entre aguardar e desejar a espera faz-se limiar. Para dar contorno a essa imagem será preciso rondar.
“Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Que esperamos? O que nos espera?” Com essas palavras, Ernest Bloch (2005, p.13) inicia o prefácio de sua obra “O princípio Esperança”. Ao imaginar um mundo melhor, a esperança seria o ingrediente base no princípio utópico. Esperamos que algo mude, esperamos algo melhor.
Mas quanto tempo é preciso esperar? No poema “Cada um com sua quimera” Charles Baudelaire (1995) escreve: “Impulsionados por uma invencível vontade de andar […] caminhavam com a fisionomia resignada dos que são condenados a esperar sempre”.
É preciso aguentar esperar. O que há de tão penoso para tornar a espera uma condenação? Que tempo é esse que não se encerra? Tempo prenhe mas que não se preenche. Entre a terra arrasada e a terra fértil, entre o portão e a casa, entre a sentença e a liberdade, entre a morte e o enterro, entre uma onda e outra; lá está a espera. Como fazer durar o que está nesse entre? Intervalo entre a palavra que pensamos e a palavra que escrevemos. Como sustentar a espera? O que se espera da espera?
Num de seus filmes, o cineasta Werner Herzog diz que, muitas vezes, a beleza de um plano está naquilo que é resto, no que acontece fortuitamente antes ou depois da ação. São as esperas, o tempo morto, os momentos em que quase nada acontece.[1]
Quase nada acontece na espera. Quase nada…o que acontece então na espera?
A espera coloca-se em um vértice de uma dupla posição. Em uma delas, trata-se de aguardar: quem espera ocuparia então uma posição passiva, de alguém que está sujeito à algo, como se não restasse mais nada a fazer, somente a receber. Em outra, é de desejar que se trata; uma posição, portanto, ativa. De um lado angústia, de outro esperança. Nesse cruzamento, ressalto a espera que não se deixa parar, a espera que faz criar, sem no entanto deixar-se engolir pela produtividade que vem nos assombrar.
Contra o tempo da modernidade que encurta as transições, a espera busca dilatar os minutos que insistem em nos apressar. Enganar os ponteiros dos relógios na tentativa de criar um limiar: uma zona de indeterminação, de espaço e tempo intermediários; um entre, poderia se dizer. Território de transição que não é estático, o limiar permite movimentos, possibilitando, assim, a criação de deslocamentos e desvios.
Nessas paredes porosas situa-se a espera, sem formato prévio e tempo cronometrado. A espera oferta um tempo-espaço cru. Tal qual uma massa de modelar, precisa de muitos toques para ganhar contorno. Necessita contato, aproximação. Afetos que possam contagiar. Como disse Ernest Bloch (2005, p.13), “o afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las”. A espera, portanto, busca criar uma suspensão na urgência de produzir. Faz do alargamento do tempo um gesto de resistência.
Lá está ela. Segue no mesmo movimento. Sua sombra denuncia cansaço, suas mãos suadas e enrugadas marcam a passagem do tempo. Mas seu corpo não amolece. Em suas mãos, somente uma pá. Curva-se a todo instante, mas não o faz pelo frio que sente. Precisa continuar cavando. E que força tem! Conforme aumenta a terra a seu lado, mais profundo torna-se o buraco a sua frente. Um, dois, três…quantos metros deve cavar? O movimento segue sempre o mesmo ritmo e parece manter-se no mesmo lugar. Ou seriam nossos olhos já cansados que não nos permitem ver uma mudança acontecer? Uma, duas, três… A Mãe não está sozinha. Ao olharmos para os lados, vemos outras. Ininterruptamente as mães cavam. Apesar das mãos machucadas, do cansaço e do frio, apesar e contra tudo, elas seguem. Afinal, o que as mantêm de pé? Por que estão ali? O que esperam encontrar? Dizem que um segredo lhes foi contado. Algo ali está enterrado, não irão parar até encontrar. Mas é preciso esperar.
Espera como tempo-espaço de resistência. Resistir contra o apagamento. Contra o vento que leva os restos, contra o mar que lava os rastros; contra a página virada. A espera como ato de resistência. Ou seria toda resistência uma espera? Afinal, não resistimos porque esperamos algo? Por que imaginamos uma mudança por vir? Espera por imagens-resistentes. Sartre, citado por Didi-Huberman diz que a imagem é um ato, não uma coisa.
O que vemos? Não é possível ver com clareza, está escuro. Não parece ser dia nem noite. Talvez logo após o entardecer, talvez logo antes do amanhecer. A luz dos faróis dos carros e das lojas abertas nos permitem ver alguns contornos de múltiplas tonalidades, formas variadas. Estamos a contornar algo. Alguns carros surgem à frente e, tal como eles, estamos na rua, no asfalto. No canto, um pedaço de monumento é mostrado muito rapidamente, e então a paisagem começa a se mover. Vamos avançando pelas praças e calçadas arborizadas da cidade grande. Vemos grandes avenidas, carros, lojas…bem ao fundo, um grande e imponente monumento. Ali não se para. Segue-se. Ainda que se mova, a paisagem parece se repetir. Estão dando voltas? O movimento segue sempre o mesmo ritmo e parece manter-se no mesmo lugar. Ou seriam nossos olhos já cansados que não nos permitem ver uma mudança acontecer?
“Chamam-nas de ‘mãos negativas’, as mãos encontradas nas paredes das cavernas magdalenianas da Europa Sul-atlântica […] nenhuma explicação foi encontrada para essa prática.” Assim inicia o curta-metragem de Marguerite Duras, Les Mains Négatives (1979). Considerada como uma das principais vozes femininas da literatura do século XX na Europa, Duras trabalhou como romancista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturgia francesa. Neste vídeo observamos imagens das ruas de Paris filmadas por uma câmera em movimento. Um movimento que parece circular, dando-nos a impressão de passarmos mais de uma vez pelos mesmos locais. Além do cenário, aparecem repetições também nas frases pronunciadas durante o vídeo.
Como esta, que se ouve mais adiante: “Há trinta mil anos os homens gritam de frente para o mar”. Em referência às mãos humanas encontradas nas cavernas de Lascaux, a narrativa prossegue descrevendo ora as mãos – azuis e pretas – ora a água, azul, e a luz, branca. Enquanto enxergamos, entre diferentes tons de cinza, as lojas francesas iluminando as calçadas, escutamos palavras que descrevem a força da natureza:
“O vento sopra do continente, ele empurra o oceano. As ondas lutam contra o vento. Elas avançam, lentamente, em sua força e, pacientemente, alcançam a caverna. Tudo se choca.” Depois do choque, o que resta? Que marcas humanas ainda permanecem? Da caverna não vemos nenhuma imagem, apenas imaginamos. Rondamos a bastilha.
“Trinta mil anos… restarão essas mãos…ninguém ouvirá mais, ou verá”. De maneira intensa e delicada Marguerite Duras alerta para o esquecimento da história humana. O que sobrevive à passagem do tempo? Como as marcas podem resistir ao apagamento, ao choque das ondas com a caverna? É da mesma frase que diz da impossibilidade que recolhemos a pista para sobrevivência: é preciso alguém que veja, que escute, alguém que testemunhe.
Como escreveu o filósofo Giorgio Agamben (2008), uma das razões para sobreviver é tornar-se testemunha. Se quem viu a górgona – tocou o fundo –, esteve no centro, então é preciso dele se deslocar. É preciso rondar. Dessa forma, no vídeo de Duras, ao nos sentirmos parte da paisagem parisiense, no fluxo dos carros que rondam o centro, seríamos nós testemunhas?
De frente para o oceano está a caverna e também os homens que gritam, devant la mér. Seguindo o som das palavras, deslizamos do mar para mãe. (A palavra francesa para “mar” possui o mesmo som da palavra francesa para “mãe”).
As mães contornam a praça. Seguem caminhando em ritmo constante, aumentando o som da marcha à medida que mais pernas se juntam a esse gesto. As mães rondam o monumento que há no centro. Não a bastilha parisiense, mas outro símbolo do poder; não na Europa, mas na América Latina. Gritam de frente para a casa rosa. Há quarenta anos as mulheres gritam de costas para o rio. Chamam-nas de Madres de Plaza de Mayo, as mães encontradas rondando a praça argentina da América Sul-atlântica. Algumas explicações foram sim encontradas para essa prática.
Há quase 40 anos, em plena ditadura argentina, um pequeno grupo de mulheres juntava-se na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, a mais importante da nação, localizada em frente à Casa Rosada, sede do poder Argentino. Diante do decreto que proibia a reunião de três ou mais pessoas em lugares públicos, as mulheres não puderam ficar paradas. Começaram então a circular ao redor da Pirâmide de Maio, monumento erguido em 1811 para celebrar a luta pela independência da Argentina, e, desde então, não pararam.
Formando um movimento de resistência não-violenta, as Madres de Plaza de Mayo buscavam pressionar o governo, sinalizando que não se calariam frente ao crescente número de desaparecimentos forçados ocorridos durante o regime de Videla. Tentaram sumir com os corpos jogando-os no rio; tentaram apagar a identidade dos filhos de resistentes dando-os a famílias de militares; tentaram calar as Madres colocando-as atrás das grades. Mas os restos aparecem, o corpo boia, a memória retorna, e as mães nunca deixaram de o ser. Mães não se calam, não somem; sobrevivem. Assim como as mãos na caverna, o rondar das mães é visto e seus gritos são ouvidos.
Imagem de arquivo pessoal
A identidade das mãos, das mães e dos filhos é assinalada como marca que precisa ser escutada, vista, testemunhada.
A correnteza do rio que passa carrega o que encontra nas margens, e seu volume aumenta à medida que acumula os restos de hoje com as ruínas de ontem. Passado e presente desembocam no mesmo cemitério. Como desviar o curso do rio? Como produzir excursões? A ditadura civil-militar se encerrou. A violência de Estado continua. Os movimentos de resistência das mães também. Seguem reexistindo.
As mães rondam, as mães cavam. Gestos que resistem ao choque do mar e buscam fazer aparecer o que a onda tenta levar. Gestos de resistência. O filósofo francês contemporâneo Georges Didi-Huberman, em sua mais recente exposição (Soulèvements, 2017), enfatiza a dimensão política dos gestos que se inscrevem na história. Como rastros que permanecem, “os gestos se transmitem, os gestos sobrevivem apesar de nós mesmos e apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p.94)[2]. O filósofo propõe pensar gestos que possam derrubar uma submissão, como signos de esperança e resistência – sublevar-se. Nesse exercício, encontra-se o cavar e o rondar. Gestos de insurgência e leveza. Gestos da espera, desse limiar árido de onde é possível brotar frutos.
Linguagens do povo, gestos, rostos: tudo isso que a história não consegue exprimir nos simples termos da evolução ou da obsolência. Tudo isso que, por contraste, desenha zonas ou redes de sobrevivências no lugar mesmo onde se declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua resistência, sua vocação para a revolta. (DIDI-HUBERMAN, 2014, p.72)
O autor retoma a declaração de Agamben de que “desde o fim do século XIX, a burguesia ocidental havia perdido seus gestos” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p.78), para então confrontá-la. Onde estarão esses gestos? Se foram perdidos, como reencontrá-los? Como ver as mãos da caverna que resistem ao apagamento pelas ondas? Imagem esta que se faz presente no vídeo de Duras, não através das filmagens, mas das palavras. Palavras que formam gestos, gestos que formam imagens.
“E no fim, quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera.”[3]
* Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem , realizado em dezembro de 2017, pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política / UFRGS.
**Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que Resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.
BAUDELAIRE, Charles. Cada um com sua quimera. In: O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
DURAS, Marguerite. Les Mains Négatives. França, 1979.
GUZMÁN, Patricio. Nostalgia de la luz. Chile, 2010.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
________________________. Sublevaciones. Buenos Aires: MUNTREF Centro de Arte Contemporáneo, 2017. Catálogo de exposição.
SALLES, João Moreira. Santiago. Brasil, 2007.
[1] Trecho do filme “Santiago” (2007) de João Moreira Salles.
[2] No original: “los gestos se transmiten, los gestos sobreviven pese a nosotros mismos y pese a todo”
[3] Fala de João Moreira Salles no filme “Santiago” (2007).