Formação do psiquiatra: a Psicanálise como forma de resistência à Psiquiatria neoliberal

Formação do psiquiatra: a Psicanálise como forma de resistência à Psiquiatria neoliberal

Revista Lacuna

por Fabio Carezzato & Diva Reale

Apresentação de objeto: Primeiros passos e a mesa pontiaguda no trajeto

A introdução da Psicanálise para médicos residentes tem risco considerável de ser uma experiência traumática. De um lado temos indivíduos ao menos no sétimo ano de formação extenuante na prática médica, vindos de seis anos de graduação com treinamento extensivo em um olhar objetivante e epidemiológico, com aspirações científicas, embora muitas vezes descambando simplesmente para o cientificista. De outro lado, a Psicanálise: uma prática que volta sua atenção para o subjetivo e a singularidade da pessoa à sua frente.

Quando chega à Residência de Psiquiatria, pode vir a encontrar um ambiente onde impera um esforço de austeridade em que a objetivação na prática de diagnosticar e prescrever o tratamento busca reproduzir os rituais que a tornem passível de ser reconhecida ainda como uma especialidade médica. Uma passagem anedótica ilustra a que ponto pode chegar a deformação do ensino da Psiquiatria no afã de reconhecimento científico, no sentido vulgar do termo. Orientando um residente em suas primeiras consultas, um professor recomenda que este deve evitar abrir a consulta com a simples pergunta para o paciente: “como está se sentindo?”. Sua justificativa é que essa pergunta tem o inconveniente de convidar o paciente a se expressar mais livremente, pautando o seu relato em seu sentir, o que levaria a consulta a se afastar daquilo a que ela deve se prestar: mensurar como evoluíram os critérios evidenciados pela coleta dos dados das escalas aplicadas desde a última consulta. Para obter tais informações com a melhor objetividade possível deverá o aprendiz se ater aos questionários padronizados, visto que ele, e não o paciente, sabe o que deve ser investigado.

Não é difícil perceber que, no quesito objetivação do problema a ser tratado, a Psiquiatria acaba por ser a prima pobre das especialidades médicas nas quais a objetividade parece ser intuitivamente ou tacitamente colocada na sua prática. Pensemos, por exemplo, como na Ortopedia há uma relativa facilidade para evidenciar uma fratura ou lesão de partes moles. Graças a esse desconfortável estatuto de se ocupar de objetos excessivamente fugidios, vemos esforços crescentes para criar instrumentos que possam auferir objetividade na medição dos fenômenos que servirão para compor um diagnóstico. Assegurado o rigor na obtenção do diagnóstico, a etapa seguinte será escolher dentre as modalidades terapêuticas aquelas que se mostrarem confiáveis aos olhos armados das pesquisas que visam medir resultados clínicos.

Multiple MRI scans October 16, 2001

Quão oposta se encontra uma prática que se apoia em conceitos e construtos teóricos que aprofundaram as dimensões da subjetividade, desdobrando-a no registro do intrapsíquico, da intersubjetividade e chegando na transmissão transgeracional?

Novamente, de um lado temos uma prática de ensino médico-psiquiátrico que enfatiza sua base nas ditas evidências, em que o empírico só tem valor se mensurável; de outro lado uma que em sua evolução durante o século XX apontou para o valor da interpretação e busca de sentidos singulares aprofundando a busca de tradução do inconsciente com a esperança de desfazer os complexos, recuperar movimento para aquilo que se fixara e recuperar desenvolvimento para aquilo que aprisionou a pessoa às configurações relacionais passadas, muitas vezes instituídas nos primórdios de sua existência.

Se essas questões forem desconsideradas no momento e forma de apresentar a Psicanálise aos futuros psiquiatras, a chance de afastá-los é maior do que a de despertar sua curiosidade, permitindo que possam se intrigar com novas questões e pontos de vista. Vejamos como, na formação médica, o aluno é apresentado à clínica e qual a atitude que lhe é ensinada frente ao paciente.

Como aponta Eric Cassel[1], médico de família americano, frente à queixa do indivíduo a medicina propõe dar um diagnóstico que nomeará esse padecimento, definirá sua etiologia e focará na cura desse sofrimento. Tal entendimento proporciona uma resposta fácil tanto à angústia do paciente quanto à do profissional que identificou o problema como um evento e trabalhará para interromper esse evento que adoece quem o procurou. Veja, para medicina o sintoma é, antes de tudo, algo a ser extirpado, eliminado da forma mais indolor possível. Não há o que se compreender em uma pneumonia.

Cassel segue apontando a diferença entre essa abordagem, digamos, tradicional médica em relação à prática na Medicina de Família e Comunidade, em que a doença deixa de ser protagonista e em seu lugar vêm a pessoa e o meio à sua volta. Fala dessa nova visão em que o sofrimento é entendido dentro da integralidade do indivíduo e propõe ante a ele acolhimento e compreensão.

Aproveitar dessas modalidades de medicina em que as relações interpessoais, na família e na comunidade também são levadas em consideração na avaliação dos problemas e nas soluções a serem buscadas para o paciente pode ser uma boa estratégia para diminuir a distância entre a objetividade e subjetividade colocadas como categorias absolutas e estranhas entre si.

O mesmo paralelo pode ser realizado na saúde mental. Nesta o médico treinado para realizar intervenções para interromper o evento ‘doença’ depara-se com um campo no qual nem mesmo o termo ‘doença’ é usado e em que o limite entre o normal e o patológico é assunto mais próximo da filosofia que da fisiologia. Canguilhem[2], citando Henry Ey, diz “o normal não é uma média correlativa a um conceito social, não é um julgamento de realidade, é um julgamento de valor, é uma noção limite que define o máximo de capacidade de um ser”. E prossegue “o conceito geral de valor se especificou em uma grande quantidade de conceitos de existência […] Logo, compreende-se perfeitamente que os médicos se desinteressem de um conceito que lhes parece ou excessivamente vulgar ou excessivamente metafísico. O que lhes interessa é diagnosticar e curar. […] curar é fazer voltar a norma”.

Nesse momento em que o residente está sendo exposto ao afã de aprender a reproduzir os rituais que auferem credibilidade científica a sua prática, apresentar a Psicanálise — com epistemologia, método e prática próprios, muitas vezes contrários aos preceitos objetivantes — coloca um grande desafio ao professor-supervisor: uma epistemologia monista e um método que contraria o científico-positivista, criando sua teoria a partir da prática e das experiências subjetivas e relacionais, em vez de propor teorias prévias, testá-las e refutá-las ou comprová-las. Ao permitir que o humano seja mesmo humano, em contraponto com uma máquina, a Psicanálise se retira dos regulamentos cientificistas — que estabelecem uma quantificação e, a partir dela, uma definição de normal —, representando uma quebra com a Psiquiatria neoliberal.

Tal afastamento é de extrema importância para uma crítica do pensamento positivista atual, tal como fora na época de Freud. A suposta irracionalidade da Psicanálise entra como uma das formas próprias do saber científico, contestando a prática positivista de excluir de seu campo os fenômenos que não consegue quantificar e procurando, a partir de seus conceitos originais, resultados mais satisfatórios para a interpretação da realidade.[3]

Além dessa quebra, o recém-formado médico se depara com uma prática em que o sintoma é algo a ser suportado e investigado; em que a angústia é compartilhada, e não extirpada; e a cura, como concebida na medicina, não é buscada como meta.

Por isso esta introdução ou ‘apresentação de objeto’ — no sentido forte dado por Winnicott — requer diversos cuidados para poder ser escutada e absorvida.

Muitos dos jovens médicos que chegam à residência de Psiquiatria não tiveram contato com a Psicanálise que não fosse pela grande mídia. Quando for esse o caso, suas ideias da Psicanálise se restringem aos clichês a ela associados.

Em muitos dos cursos de graduação de Medicina, a Psiquiatria, ensinada em vários momentos, foi-lhes apresentada como se sua prática pudesse prescindir completamente das contribuições psicanalíticas. Se isso é fato, para que insistir em aproximar a Psicanálise do campo médico, seja na especialidade voltada para os transtornos mentais seja em outras áreas da prática médica?

Psiquiatria por evidência ou da Psiquiatria neoliberal

Ao longo dos séculos XX e XXI o desenvolvimento de ambas — Psiquiatria e Psicanálise — estabeleceu, entre elas, distâncias por alguns consideradas intransponíveis.

A apelidada Medicina por Evidência quer nos fazer acreditar que só podemos adotar as modalidades terapêuticas que tenham eficácia comprovada através de estudos clínicos conduzidos dentro de pesquisas de epidemiologia clínica. E, pela sua própria natureza, a Psicanálise não se presta de forma direta a esse tipo de metodologia de pesquisa. Mas para essa afirmativa se sustentar é necessário realizar uma considerável deformação perceptual, escotomizando inúmeras evidências clínicas que a prática em Saúde Mental nos revela.

  1. Uma parcela considerável de pacientes não responde às terapêuticas que mostraram em estudos alguma evidência de eficácia;
  2. Esses mesmos estudos exigem uma seleção da amostra a ser estudada que geralmente exclui uma parcela de pacientes mais comprometidos — dessa forma, hipertrofiando ou maquiando a eficácia ou restringindo à medição de resultados para populações de pacientes circunscritos conforme objetivos e metodologia adotados. São muitas vezes excluídos: pacientes com mais de uma comorbidade; pacientes com problemas sociais acarretando maiores vulnerabilidades ou com doenças clínicas de maior gravidade, dentre outras restrições;
  3. Assim surgem categorias como: pacientes portadores de transtornos refratários às terapêuticas psicofarmacológicas disponíveis; pacientes com graves problemas “sociais”; pacientes que “não aderem” ao tratamento, dentre outros;
  4. Por último, identificaríamos os pacientes que “evoluem mal” por “aspectos dinâmicos” que interferem na resposta terapêutica.

Cientes dessas dificuldades, alguns grupos de ambulatórios — organizados a partir de alguma patologia ou transtornos afins — mantêm um ou dois profissionais situados mais perifericamente no serviço, dispostos e capacitados para conduzir alguma modalidade psicoterápica psicodinâmica ou psicanaliticamente orientada. Esse tipo de grupo, que ‘ainda tolera’ as terapêuticas psicodinâmicas, costuma utilizá-las como último recurso, sendo encaminhados para alguma psicoterapia psicodinâmica os pacientes que ‘evoluem mal por razões dinâmicas’.

De um modo geral não é considerado que parte dessa evolução ruim pode ter sido construída ou piorada pela forma como o sofrimento psíquico gerador de uma busca de ajuda foi (mal) recebido. Um indício desse incômodo e prejuízo é a criação, em Barcelona, de grupos [4] compostos por pessoas diagnosticadas com algum transtorno mental e críticas ao atual sistema, que se dizem “ cansados de ser objeto do saber especializado de outros, decidindo ser os sujeitos de sua própria experiência de vida.”

O procedimento de triagem não transforma o sofrimento psíquico em uma demanda, mas o objetiva, gerando um diagnóstico após ser catalogado num arrolamento de sintomas. Assim a doença se confunde com estes e seu desaparecimento é considerado parâmetro de “cura” e sucesso terapêutico. Abole-se a subjetividade dos pacientes; portanto, também passam a ser ignorados a força de seu desejo inconsciente, o valor da esperança e da ilusão como elementos constitutivos da saúde psíquica — retirando-se, ao mesmo tempo, o protagonismo dele diante do seu processo de cura, a qual não vem acompanhada de uma experiência de enriquecimento, desenvolvimento ou empoderamento.

Avassalado pelo diagnóstico e pela terapêutica que corrigirá seu distúrbio neuroquímico, resta ao paciente uma posição de submissão incondicional ao poder médico. Poder que, por haver assumido um homem-máquina, associado a uma sociedade em que a produtividade e a evitação do conflito são as grandes metas, produz uma ciência para a qual basta que o indivíduo consiga exercer suas funções de trabalho, dormir e não incomodar para ser considerado são.

Nem todos os pacientes conseguem se beneficiar de um tratamento avassalador. Alguns reagirão mal à repetição da falta de sensibilidade para com seu sofrimento, muitas vezes tendo participado de ambientes familiares invalidantes, intrusivos ou abandonantes que, no mínimo, ajudaram a condicionar sua forma de adoecer. Assim, sua reação negativa ao tratamento faz deles fortes candidatos a repetir com o médico as mesmas relações conturbadas que mantêm com seus familiares

Quando a Medicina ou a Psiquiatria retiram o sujeito da sua compreensão do paciente, tornam obsoleto o entendimento dos processos psíquicos ou da sua realidade psíquica, deixando de contextualizar os sintomas em uma história pessoal e um ambiente. Acabam por normatizar o indivíduo, induzindo ao achatamento do limiar entre o normal e o patológico. No extremo desse deslizamento, simplória e levianamente, tudo pode ser considerado patológico.

A importância dessa contextualização é ilustrada no caso abaixo:[5]

Paciente com febre a esclarecer há 8 meses, transferido para um hospital universitário pela falta de diagnóstico, apesar de já ter sido virado do avesso com todos os exames laboratoriais e de imagens possíveis realizados. Ao ser entrevistado numa reunião clinica da qual participavam dois analistas, foi perguntado mais uma vez se ele poderia contar como foi que surgira a febre pela primeira vez. O paciente menciona que se lembrou de algo que nunca havia mencionado antes: a febre surgiu após um tremendo suadouro provocado num carro fechado sem ar condicionado em um ambiente com temperaturas próximas a 40 graus, com o intuito de fazer desaparecer qualquer vestígio olfativo de sua infidelidade conjugal. O cheiro incriminador sumiu, deixando em seu lugar uma febre enigmática e intratável.

A contribuição da Psicanálise à prática médica

A visão psicanalítica permite entendermos que os sintomas não se apresentam por acaso, mas têm uma função no psiquismo do paciente. Decorre disso que os sintomas não devem ser simplesmente abolidos, pois portam enigmas ou questões que, tornando-se objeto de investigação analítica, permitirão uma travessia em direção àquilo que é nuclear à forma de ser da pessoa e à sua maneira de se relacionar.

Examinemos a noção de saúde da teoria de Canguilhem: nela se ambiciona criar um indivíduo normatizador, que tem condição de adaptar suas normas a seu ambiente e ser harmônico e atuante em seu meio. Como diz o médico-filósofo, “é a própria vida, pela diferença que estabelece entre seus comportamentos propulsivos e repulsivos, que introduz na consciência humana as categorias de saúde e doença. Essas categorias são biologicamente técnicas e subjetivas, e não biologicamente científicas e objetivas”.

Em outro nível, a terapêutica foca na regeneração e na restituição orgânica do psiquismo, busca uma cura e acaba por cair num outro tipo de normatização que soa inadequada no momento em que se adiciona um sujeito para a equação.

Isso porque um ser desejante tem o direito a escolhas que podem fugir desse conceito médico do ‘saudável’ e que nem por isso devem ser reprimidas pelo tratamento. Uma terapêutica que adote uma ética validadora da autonomia do paciente como um sujeito, capaz de fazer escolhas não completamente submetidas aos parâmetros inventados pela psicopatologia contemporânea, não deveria focar na eliminação das práticas e atitudes que refletem tais escolhas, mas sim respeitar ou tolerar, o que equivale a dizer compreender essas opções do indivíduo.

Um exemplo desse tipo é o paciente que opta, com suas competências, por manter algum uso de drogas ilícitas, distinto daquele disfuncional que gerou a procura e o diagnóstico que justificou a implementação do tratamento. Aceitar acompanhar clinicamente o paciente mesmo que ele faça uma escolha desse tipo implica ser capaz de reconhecer criticamente que nossos construtos teórico-clínicos devem ser modulados na sua aplicação pelo respeito aos limites instituídos pelo desejo expresso pelo paciente e pela demonstração de sua capacidade de bancá-lo.

Validando o desejo e a autonomia do paciente, a Psicanálise quebra esse conceito restrito de ‘melhora’, contribuindo para uma visão que inclui um multiverso de resultados e soluções existenciais que o paciente singular conseguiu construir e conquistar para si. Assim fazendo, acaba por se contrapor a uma visão positivista que pressupõe um normal universal e, no comportamento singular, um desvio — perdendo contato com o que temos de mais humano, próprio.

As histórias silenciadas na hora de agrupar pacientes em categorias diagnósticas, quando podem ser contadas num ambiente relacional propício — as entrevistas preliminares à tomada do paciente em uma psicoterapia ou Psicanálise, por exemplo —, geram uma experiência compartilhada que permite ao psicanalista (ou psiquiatra com alguma formação que embebe sua prática num caldo psicanalítico) estabelecer um raciocínio clínico capaz de articular sintomas, eventos ou acontecimentos da vida.

Esse raciocínio pode ser organizado no que costuma ser chamado hipótese dinâmica básica (HDB), que permite nortear uma eventual indicação e contraindicação às distintas modalidades psicoterápicas psicodinâmicas/psicanalíticas, como por exemplo a psicoterapia dinâmica breve[6]. Tais dispositivos ganham relevância em práticas psicoterápicas que buscam otimizar respostas éticas e tecnicamente ajustadas às pressões institucionais, sejam públicas ou privadas. E essas modalidades psicoterápicas são formas encontradas em instituições universitárias[7] de aproximação e de apresentação do campo psicanalítico ampliado ou extenso. Variações de enquadre envolvendo frequências de sessões cada vez em menor número por semana das chamadas psicoterapias psicanalíticas ou psicodinâmicas são cada vez mais praticadas mesmo nos consultórios privados.

Não é difícil reconhecer o quanto tais práticas psicoterápicas ampliam e beneficiam um maior número de pacientes. Se isso significa um empobrecimento na radicalidade e na potência transformadora do campo psicanalítico, caberá ao futuro dizer. Se for feito um mau uso da existência dessas modalidades na direção de baratear ou sucatear a formação de analistas capazes de conduzir análises na sua concepção original e plena, então uma nova luta precisará ser travada por aqueles dispostos a assumir responsabilidade pela formação de analistas.

Mas voltemos ao olhar do médico capaz de indicar um tratamento munido pela sensibilidade à existência do inconsciente no paciente. A indicação do tratamento leva em conta o sofrimento do paciente, articulando sua queixa, validando sua busca de apoio, favorecendo que seja construída uma demanda de ajuda psíquica. O mundo pessoal, pela escuta de sua história subjetiva, é levado em consideração. A aceitação do paciente em tratamento recruta sua pessoalidade ao articular a demanda num projeto terapêutico que acaba por ser conjuntamente construído.

Por exemplo, em um caso atendido na Liga de Febre Reumática do HC-FMUSP, em que o protocolo médico sugeria uma alteração da medicação para evitar alguns riscos à paciente. Porém, esse ajuste fazia com que ela tivesse dificuldade para dançar nos bailes que adorava ir. Explicado os riscos para ela, optamos por manter a dose da medicação e permitir que ela continuasse com sua atividade.

Esquematicamente apresentamos dois modos de ver, nomear e recortar os problemas que configuram sofrimento psíquico e ou transtorno psiquiátrico diagnosticável.

A apresentação da Psicanálise, quando feita cuidadosamente, terá um valor de antídoto, ao menos parcial, à realidade formativa de nossos futuros psiquiatras expostos, em lugares considerados de excelência formativa, a esse tipo de doutrinação ideológica disfarçada de ciência. Doutrinação de um reducionismo que afronta pressupostos mínimos daquilo que constitui a natureza humana[8] ou de como afeto, corpo e linguagem participam da produção de sentidos[9] — e que acaba por abrir mão da indissolúvel associação entre natureza e cultura, entre singularidade e coletivo, entre biologia e história, na construção conjunta de cada um.[10]

Acreditamos dever buscar uma descrição menos empobrecedora daquilo que constitui o humano. Por isso gostamos de visões afinadas à perspectiva da complexidade[11], mas também de visões como a de Daniel Stern. Esse pesquisador não utiliza metodologias de investigação psicanalíticas, mas mantém uma interlocução com a Psicanálise, buscando aproximar, ao invés de excluir, modelos constitutivos adotados por diferentes escolas psicanalíticas. Por exemplo, ele reconhece a existência de três sistemas motivacionais básicos adotados por diferentes escolas/grupos psicanalíticos movidos por: buscar o prazer/evitar o desprazer; buscar e manter o objeto pelo qual se formou apego; e buscar estabelecer a intersubjetividade.[12]

Transferências institucionais: o médico e o paciente

Isto posto, vale dizer que o objetivo de um ensino de Psicanálise em uma residência de Psiquiatria está longe de ser o de formar psicanalistas ou mesmo psicoterapeutas, mas sim propiciar a esses médicos as contribuições importantes que a Psicanálise trouxe para nosso entendimento da psique e da mente, além de forjar ferramentas essenciais para compreender a relação com o paciente e capacitar para a realização de intervenções mais abrangentes na clínica diária. Mas se pudermos despertar o interesse e o reconhecimento das novas gerações de psiquiatras pela formação específica e rigorosa que essas práticas — psicoterapia e Psicanálise — exigem, será um indicador de que acertamos na ‘apresentação do objeto’.

A contribuição da Psicanálise permeia também toda a estrutura ligada ao atendimento, incluindo a relação institucional, as supervisões, e mesmo a análise pessoal do futuro psiquiatra. Freud, em seu texto “Sobre o ensino da Psicanálise nas universidades”, de 1919, já aborda muitas das questões que discutiremos a seguir, debatendo qual seria o espaço da Psicanálise na formação médica e psiquiátrica.

A mais óbvia dessas contribuições se estende também pela medicina como um todo, na disciplina chamada Psicologia Médica. Essa disciplina, já mencionada por Freud[13] no início do século XX, ao longo do último século incorporou os conceitos da Psicanálise para levar ao estudante conceitos da dinâmica das relações médico-paciente e introduzir os efeitos da transferência, da contratransferência e dos movimentos da dinâmica desse encontro no adoecimento e no tratamento.

Na Psiquiatria a Psicanálise ainda pode contribuir com outros dois aspectos bastante importantes para a prática clínica. Em um campo mais teórico, é uma das poucas ciências que propõem um modelo estruturado de aparelho psíquico, com diversas descobertas da neurociência permitindo uma interlocução com alguns de seus conceitos centrais, ou oferecendo novos elementos para enriquecer uma leitura crítica.[14] Edelman[15] e Damásio[16] são exemplos de neurocientistas que estabelecem uma aproximação na direção da validação do pensar freudiano.

Já em um campo mais prático e voltando para nossa discussão no início desta seção, a Psicanálise propõe um entendimento do sintoma e uma escuta do paciente que muda inclusive as condutas medicamentosas e o planejamento terapêutico como um todo. Em posse dessa ferramenta, o psiquiatra pode entender o sintoma como parte integrante da pessoa à sua frente, e não algo a ser amputado. Nessa visão a medicação deixa de ser protagonista e passa a dar suporte para um tratamento focado no desenvolvimento emocional da pessoa, estabelecendo uma relação na qual a intersubjetividade é levada em conta e coloca-se a serviço da busca pelo incremento da autonomia do paciente.

 

A clássica Psiquiatria Psicodinâmica de Henri Ey[17], praticada na França entre anos 60 e 80 — e que, em nosso meio universitário, tornou-se parte da história —, propunha uma aproximação possível entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Outro autor, Gabbard[18], da Psiquiatria psicodinâmica norte-americana, publica ainda hoje inúmeros livros que percorrem o campo que liga as duas áreas e que se mantêm circulando entre psiquiatras e serviços que fogem do mainstream.

No entanto, notamos uma indisfarçável antipatia por essa modalidade da Psiquiatria (que reproduz um forte acento norte-americano organizado na escola da Psicologia do Ego) de ambas as partes: tanto da parte dos psiquiatras adeptos da simplificação cientificista auferida pelos DSMs quanto dos psicanalistas de quase todas as cores. O assunto que abrange as formas de constituição e preservação ou corrosão das identidades profissionais de psiquiatras que se tornam psicanalistas mereceria um artigo próprio. Existem desde formas que permaneceram não ditas até alguns anos atrás — psiquiatras que optam por medicar, eles próprios, seus pacientes de psicoterapia psicanalítica — até psiquiatras que abandonam qualquer proximidade com a Psiquiatria, posicionando-se de tal forma que deixam de reconhecer como benéficas certas especificidades da clínica psiquiátrica, desprezando a eventual contribuição da dimensão biológica/psicofarmacológica na etiopatogenia ou na resposta terapêutica aliviadora dos sintomas. A título de provocar a curiosidade no leitor sobre o assunto incluímos, além das vinhetas, um excerto clínico ao final deste artigo para ilustrar o que chamamos de prática híbrida.

É fácil entender como a compreensão psicanalítica do transtorno mental pode ser aversiva ao que chamamos de Psiquiatria neoliberal. Esse tipo de pensamento é ameaçador para a prática que é financiada por uma indústria da saúde composta por farmacêuticas, hospitais e convênios e embasada em uma visão de mundo centrada no consumo e na mecanização dos serviços que permite uma precarização do trabalho e a transformação do profissional de saúde mental como mero intermediador entre o paciente/consumidor e a indústria.

Primeiro pela qualidade artesanal e individualizada das intervenções, que impede formar uma linha de produção, um protocolo de tratamento, valorizando os profissionais envolvidos e aumentando o tempo de tratamento. Depois, assumindo que o sofrimento do paciente não será (nem poderia ser) resolvido exclusivamente por uma pílula que precisaria ser verdadeiramente mágica. Por fim, retira a tecnologia como centro do tratamento — indo, também, contra uma postura medicocêntrica. “Quando alguém acha que a observação anatômica, histológica, que o teste fisiológico, exame bacteriológico são métodos que permitem fazer diagnóstico de doença, até mesmo sem clínica, esse alguém está sendo vítima da mais grave confusão filosófica e mais perigosa terapêutica”[19].

Transferências institucionais: psiquiatras em formação

A delicada natureza dos mecanismos de identificação e idealização constitui a parte dos processos formativos do novo profissional sobre a qual, como professores, temos o menor controle. Identificar-se com algo ou alguém é expressão comumente usada para descrever a docilidade com que nos entregamos à reprodução de algo ou forma de ser de alguém que adquiriu um valor especial para nós. Quando, como professores ou supervisores, podemos contemplar e respeitar na formação dos profissionais tais afinidades, estamos elegendo e valorizando uma forma sensível de transmissão de conhecimento e facilitação da experiência. Experiência no encontro médico-paciente cuja captura e descrição será um dos objetos do ensino prático.

Nas supervisões durante os anos de residência[20] vemos repetidas dificuldades muito semelhantes a cada nova turma que ingressa no programa. A maior delas parece ser a mudança de posição do profissional na sessão, que citamos no início. Segurar o ímpeto do furor curandi inoculado no estudante durante seis anos de faculdade de medicina é um desafio maior do que parece. Cabe ao supervisor acolher, contornar e estimular o residente a migrar para um novo posicionamento subjetivo diante do paciente — a posição de terapeuta —,  dando continência a esta angústia, tratada por Cassel como natural, do médico diante do sofrimento do indivíduo à sua frente.

Aliás o supervisor psicanalista é outra nova figura no percurso do psiquiatra. Acostumado a uma tutela na medicina focada apenas no doente e que lhe proporciona respostas objetivas em relação às suas condutas, o residente é surpreendido por ter suas questões subjetivas incluídas na discussão — e, muitas vezes, ter uma orientação bem menos diretiva do que gostaria. Também traz desconforto a esses especializandos, dados a aulas expositivas, apostilas e protocolos, a transmissão de conhecimento nos moldes da Psicanálise.

A empolgação da jovem psiquiatra levando para seu supervisor o caso de uma paciente cujas histórias interessantíssimas pareciam um verdadeiro roteiro de filme brasileiro tipo ‘Tropa de elite’. Um efeito balde de água fria acorda a aprendiz para sua contratransferência após ouvir do supervisor o diagnóstico: trata-se de uma mitômana.

A experiência da primeira leitura de textos psicanalítico é, para dizer o mínimo, estranha. Sentem-se perdidos, perturbados por uma diferença tal de abordagem que pouco chegam a compreender, muitas vezes chegando a rejeitá-la pela aparente intransponível complexidade. Agrava a delicadeza dessa situação de aprendizagem o fato de que não podemos exigir, apenas recomendar, que os alunos se submetam a análise pessoal. E esse é talvez o principal tendão de Aquiles da apresentação da Psicanálise a residentes de Psiquiatria: não se aprende Psicanálise sem a experiência pessoal como paciente.

A forma de apresentação da psicanálise ao psiquiatra não pode prescindir do contato mais próximo, com a evidência do inconsciente. As discussões de caso clínico, as supervisões clínicas e institucionais, as discussões teóricas em que se levam em conta as dinâmicas que se estabelecem são situações em que o supervisor psicanalista pode, com sua sensibilidade, realizar intervenções que contribuam para evidenciar a força e a potência das manifestações inconscientes.

A sensibilidade e o estilo do professor levará a escolhas muito distintas para fazer essa primeira apresentação. Uma postura mais rígida, indiferente ao perfil geral — pouco familiarizado com os conceitos freudianos — dessa geração em formação, escolherá textos clássicos para os quais seus alunos não estarão sensibilizados por uma inexperiência clínica e um buraco teórico. O risco é criar uma rejeição in totum à Psicanálise e às suas contribuições.

Outra escolha possível[21] é adotar uma abordagem interdisciplinar onde alguns textos psicanalíticos são mesclados com textos de modalidades psicoterápicas em que a Psicanálise se traveste de psicodinâmica, se vê limitada no tempo, como nas Psicoterapias Dinâmicas Breves, ou textos que enfocam questões comuns ao campo médico: o lugar e as variações dos desenhos de pesquisa que podem enriquecer as práticas psicoterápicas. Também estendemos a programação teórica para abarcar contribuições de campos vizinhos como a Saúde Coletiva, e mesmo a neurociência quando posta em diálogo com o campo psicanalítico.

Distanciando o aluno de sua urgência em extinguir o sintoma, essa jornada aproxima o médico da realidade psíquica da pessoa, colocando ambos em uma experiência viva e real, da qual ele está afastado em outras especialidades pela atitude técnica, mais distante e usualmente recomendada.

A angústia gerada por essa aproximação fica clara com a abundância de chamados de interconsulta dos outros especialistas à Psiquiatria quando precisam abordar assuntos delicados com seus pacientes, como violência doméstica e abusos, ou quando os pacientes não aceitam passivamente as decisões da equipe médica e se negam a passar por um procedimento, ou ainda nos processos de luto frente a diagnósticos e prognósticos ruins. Um professor do HC dizia que a profissão de médico era a de dar más notícias, porém o que vemos é um despreparo em lidar com a repercussão emocional dessas más notícias de maneira que, por exemplo, nos Estados Unidos quem faz essa função são psicólogos e assistentes sociais, cabendo ao médico neoliberal apenas essa função técnica.

Prática híbrida entre Psiquiatria e Psicanálise: caso clínico[22]

Para encerrar, elegemos um relato de caso clínico atendido por um psiquiatra trabalhando num CAPS-ad. Esse atendimento exemplifica uma prática que chamamos de híbrida, pois revela uma forma de se apropriar e mesclar criativamente conhecimentos médicos como psiquiatra, experiência e formação especializada na clínica de abuso e dependência de drogas, e uma formação inicial em Psicanálise.

Outras práticas híbridas já mencionadas acima são comumente descritas como formas de enfrentar casos difíceis, sejam pacientes francamente psicóticos ou gravemente regredidos, ou que são descritos como portadores de transtornos graves de personalidade. Esses pacientes graves/gravíssimos configuram um espectro que exige equipes formadas por diferentes profissionais adotando múltiplas abordagens, além de provocar a necessidade de estender e ampliar conceitos e, quando possível, desenvolver novas formas de tratar.[23] Frente a essas inovadoras formas, colegas afirmarão comumente que tais práticas não podem ser consideradas Psicanálise; felizmente, caberá a outros colegas experimentar estas práticas corroborando sua eficácia e sua capacidade de ampliar a clínica psicanalítica.

O mesmo também ocorre na clínica psiquiátrica que resiste a se dobrar à pressão da prática hegemônica, ao insistir em reconhecer o inconsciente e se comprometer com a busca da autonomia sem formatações excessivas prévias de objetivos terapêuticos, para acudir os pacientes que extrapolam fronteiras comumente respeitadas por outros menos graves. E o grande desafio nesses casos está na capacidade de os profissionais que assumem a responsabilidade clínica estabelecerem uma relação em equipe que lhes permita ajustar a participação mútua, estabelecendo acordos de divisão de tarefas e funções menos aprisionadas aos papéis tradicionais que as profissões lhes conferem. Portanto, funções mais afinadas com elementos que reconheçam as múltiplas necessidades dos pacientes, decifradas pela leitura conjunta dos movimentos transferenciais e contratransferenciais do coletivo terapêutico.

Deixamos o leitor em companhia deste caso, mas antes lançamos a pergunta: as práticas híbridas poderão ser consideradas, em tempos de hegemonia de uma Psiquiatria neoliberal, como uma das maneiras de resistência humanista na formação do psiquiatra contemporâneo?

Iatrogenia ou clínica oficialmente precarizada?

Alberto, 20 anos. Conta que aos 14 passou a se preocupar com o progressivo declínio acadêmico e cansaço exagerado. Decidiu, por conta própria, fazer uso de anfetaminas e começou a comprá-las pela internet.

Evoluiu com irritabilidade, desconforto em ambientes públicos e sensação de ameaça.

Somente após dois anos é levado a consultas particulares, onde recebe os diagnósticos de transtorno de ansiedade, depressão e TDAH, sendo-lhe prescritos por diferentes médicos benzodiazepínicos e metilfenidato. Seu uso abusivo lembra o filme de Bob Fosse, All that Jazz, um clássico dos filmes em que o tema drogas aparece: é narrada a a historia de um diretor de musicais que morre após um coma por overdose. Alberto, quando muito irritado ou agitado, tomava os sedativos; quando prostrado ou sonolento, os estimulantes.

O diagnóstico de dependência de benzodiazepínicos foi feito anos depois, numa das consultas em Pronto Socorro, onde habitualmente se consultava para buscar medicação, sendo finalmente encaminhado para o CAPS-ad.

Feito o diagnóstico do quadro clínico psiquiátrico, prossegue a investigação da psicodinâmica pessoal e familiar para estabelecer uma melhor condição para zelar pela formação de uma aliança terapêutica que desse uma melhor sustentação ao tratamento, para além da prescrição necessária de medicamentos que pudessem modificar a situação de automedicação abusiva.

A mãe, diagnosticada com depressão, não segue acompanhamento regular, repetindo a mesma receita de antidepressivo e benzodiazepínico. Ela e Alberto demonstraram ter um funcionamento de cumplicidade transgressiva, compartilhando o abuso de medicações de prescrição. Ambos se revezam para conseguir o fornecimento do benzodiazepínico.

O pai mantém uma relação mais distante com Alberto, turbulenta seja pela intromissão da mãe, seja por atitudes onde paga a pensão com relutância.

Gosta mais da família materna. Sua figura masculina de experiência positiva principal é um avô alemão, nazista e químico, que nunca conheceu. Química se tornou sua paixão. Alberto mostra várias tatuagens de formulas químicas de diferentes drogas ao médico.

Um episódio  de roubo de uma ampola de diazepam e uma de opioide num consultório veterinário e o relato de ter se aplicado ambas num mesmo dia preocupam e deixam uma suspeita: aplicou-se ou veio exibir sua façanha para o médico? A posição da mãe nesse acontecimento foi impactante: mesmo testemunhando o roubo, seu único movimento foi alertá-lo sobre a câmera de segurança na sala do veterinário.

O grande numero de faltas, desrespeitando os acordos estabelecido, indica um cenário relacional turbulento com riscos progressivamente crescentes e inaceitáveis. Um manejo mais cuidadoso precisava ser instituído. Este seria obtido a partir de uma leitura dos efeitos na relação médico-paciente de aspectos transferenciais através de seus efeitos contratransferenciais. Assim o médico  escreve:

Sinto-me imobilizado e pego de surpresa nessa consulta. Compreendo suas interrupções como forma de evitar que eu me aprofundasse nas questões e, portanto, como uma forma de exercer seu poder, de controlar a consulta. O conteúdo trazido nas interrupções também se referia à onipotência e à desconsideração dos limites. Fico em dúvida sobre o significado dessas manifestações. Estaria me desafiando, testando os meus limites, ou tentava através do ciclo mórbido de atuações fazer um pedido de ajuda? Possivelmente as duas coisas. Na supervisão formulamos a hipótese: a mitologia nazista familiar e a indiferenciação mãe e filho podem ser tomadas como pistas para os tipos de afetos insuportáveis por ele contidos farmacologicamente.

O psiquiatra sugere, então, que se encontrem semanalmente para abordar questões diversas, principalmente relacionadas às crises e aos afetos até então sufocados quimicamente. O convite para o pai comparecer ao CAPS, para investigar as dinâmicas familiares, esbarra em fortes resistências da mãe e também numa “complexa dinâmica de controle e proteção mútua do uso quase-compartilhado”. A tensão evidente entre pai e mãe se reflete no imenso mal-estar de Alberto, que espraia pela sessão modulando os afetos do psiquiatra pelo paciente, trazendo uma compreensão “um pouco melhor da dimensão do fardo carregado” por este.

Na consulta seguinte ambos os genitores parecem aflitos, informando um acting-out mais preocupante, com uso de doses bem maiores que as anteriores. “Suspeito de uma reação negativa à reaproximação do pai. Dada a gravidade do ato, opto por encaminhá-lo ao PS, ciente do risco à aliança terapêutica incipiente, diante da delicadeza da situação transferencial”. Uma ação contundente do psiquiatra — internação curta no acolhimento do CAPS- ad — explicita com clareza a função protetora do médico: com a vida do paciente não se tergiversa. Função paterna, instituição de uma lei, mostrando que há limites com os quais não se brinca.

Retornam após uma semana, “ele está zangado comigo, mas todos vieram. As faltas cessam, ele passa a frequentar suas atividades e aos poucos demonstra mais interesse nas consultas”. Há uma mudança na qualidade relacional com o psiquiatra: “preocupa-se com minhas impressões, estabelece comigo acordos e permite-se demonstrar mais afetos”. Isso ainda não se reflete numa mudança de maior porte nos sintomas da dependência de substâncias: “a evolução quanto ao uso e abuso de drogas ainda é muito modesta”.  No entanto, a existência de uma maior proximidade, assiduidade e adesão progressiva aos objetivos traçados conjuntamente sugerem o estabelecimento de um vínculo terapêutico mais genuíno e progressivamente mais sólido.

Esse relato ilustrou como a sensibilidade à presença do inconsciente na formação do psiquiatra pode ser traduzida num leitura psicanalítica da relação médico-paciente, que buscou decifrar os movimentos transferenciais e contratransferenciais, e sustentou a formulação, refutação e refinamento de hipóteses dinâmicas sobre o paciente. Em seu conjunto, essas leituras interferiram e modularam as decisões clínicas envolvendo múltiplas ações e prescrições, revelando um especial cuidado com a formação do vínculo e fortalecimento da aliança terapêutica.

REFERÊNCIAS

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* Fabio Carezzato é médico residente em Psiquiatria no HC – FMUSP, psiquiatra no Programa da Mulher Dependente Quimica (PROMUD) IPQ- HCFMUSP e coordenador do curso “O Barato no Divã: especificidades da clínica ampliada”, Instituto Sedes Sapientiae, SP.


** Diva Reale é psiquiatra, psicanalista, mestre em Medicina Preventiva – FMUSP. Coordenadora da psicoterapia da Residência ‘Psiquiatria em Rede’ (Secretaria de Saúde Prefeitura Municipal de SP) e do curso “Drogas, Dependência, Autonomia: o barato no divã”, Instituto Sedes Sapientiae, SP.


[1] CASSELL, Eric J. (2004) The nature of suffering and the goals of medicine, 2nd ed.. Nova York: Oxford University Press.

[2] CANGUILHEM, Georges (1966) O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

[3] Gilles-Gaston Granger in ROUDINESCO, Elisabeth (1999)  Por que a psicanálise? Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2000.

[4] Red de Grupos de Apoyo Mutuo (Xarxa GAM). Mais informações podem ser obtidas no site do grupo: <www.xarxagam.org>.

[5] HERMANN, Leda (2014) Intervenções em Psicanálise – Século XXI. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 48, n. 2, pp. 59-66.

[6] SEGRE, C. D. Psicoterapia breve integrada. São Paulo: Lemos Ed. 1997;REALE, Diva (2005) O psiquiatra do terceiro milênio. Temas, São Paulo, n. 35, pp. 53-66.

[7] NETTO, Oswaldo Ferreira Leite (1999) A psicoterapia na instituição psiquiátrica. São Paulo: Ágora.

[8] WINNICOTT, Donald Woods  (1988) Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 2000; GREEN, André (1966) “The posthumous Winnicott: On Nature human”. In: ABRAM, Jan [Ed.] André Green at The Squiggle Foundation. Londres: Karnac, 2016.

[9] BEZERRA Jr., Benilton (2013) Projeto para uma Psicologia científica: Freud e as neurociências.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013.

[10] GOLDHABER, Dale (2012) The nature-nurture debates: bridging the gap. Nova York: Cambridge Press.

[11] NAJMANOVICH, Denise (2001) O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP &A; VIÑAR, Marcelo N. (2002) “Subjetividad y mutación civilizatora”. In: Psicoanalizar hoy: problemas de articulación teórico clínica. Montevidéo: Ed. Trilce.

[12] STERN, Daniel N. (2004) O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana. Trad. C. O. Lima. Rio de Janeiro: Record, 2007.

[13] FREUD, Sigmund (1919) “Sobre o ensino da Psicanálise nas universidades”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

[14] BEZERRA Jr., Benilton (2013) Projeto para uma Psicologia científica: Freud e as neurociências.Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013; DAMASIO, António (2010) O livro da consciência: a construção do cérebro consciente. São Paulo: Circulo de Leitores.

[15] EDELMAN, Gerald M. (1992) Biologia da consciência: as raízes do pensamento. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

[16] DAMASIO, António (2010) O livro da consciência: a construção do cérebro consciente. São Paulo: Circulo de Leitores.

[17] EY, Henri; BERNARD, Paul; BRISSET, Charles (1960) Tratado de psiquiatria. Barcelona: Toray-Masson, 1978.

[18] GABBARD, Glen O. (2000) Psiquiatria Psicodinâmica na prática clínica. Porto Alegre: ArtMed, 2016.

[19] CANGUILHEM, Georges (1966) O normal e o patológico. Trad. M. T. R. C. Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

[20] De 1998 a 2013, Diva Reale, um dos autores deste artigo, foi responsável por dois cursos teórico-práticos de psicoterapia para residentes de Psiquiatria da Infância e Adolescência do SEPIA-IPQ/HC-FMUSP.

[21]  Experiência em curso, na qual um dos autores, Diva Reale, é responsável pelo curso teórico-prático de Psicoterapia, parte da nova Residência de Psiquiatria em Rede-SUS, da secretaria de Saúde do municio de São Paulo, desde 2015.

[22] Agradecemos a Rodrigo, responsável pelo atendimento de Alberto, que concordou que fizéssemos uma adaptação resumida do trabalho “Da Psiquiatria à Psicanálise na clínica de AD: notas de um aprendiz”, de autoria Rodrigo Borges e Diva Reale, apresentado no V Congresso Internacional da ABRAMD, Brasília, dezembro/2015.

[23] BOLLAS, Christopher (2013) Catch them before they fall. Londres/NY: Routledge.