Atentado de janeiro de 2015 vitimou editores, cartunistas e seguranças do humorístico parisiense. E, também, a lacaniana responsável pela coluna “Charlie Divã”
Elsa Cayat acordou cedo naquele dia. Antes da reunião do jornal, teve sua aula de ioga. Iria só à tarde para seu consultório, pois às 10h foi para a sede do Charlie Hebdo. Era 7 de janeiro de 2015, um dia que não será esquecido pela História. Elsa escrevia quinzenalmente no semanário humorístico havia três anos. Sua coluna, Charlie Divã, era muito lida. Escrevia sobre sexo, desejo, temas clínicos e históricos como as raízes do Holocausto. Vinha de uma família de intelectuais de esquerda, pai e tia escritores. O fato de ser judia chamou atenção dos fanáticos islâmicos na sua decisão de eliminá-la. Nenhuma outra mulher que estava na sala de reuniões do semanário foi morta. Recordo que, na mesma semana do atentado, também em Paris, um mercado de comidas judaicas foi atacado por terroristas islâmicos, com quatro mortos.
Uma sobrinha, ao ser entrevistada após o ataque ao Charlie Hebdo, disse que Elsa já havia sido ameaçada. Foram dois telefonemas, nos quais disseram que ela devia parar de escrever – ou seria morta. Não acreditou nas ameaças. Além disso, estava tão contente em participar do grupo do Charlie, amava tanto escrever, que não quis abdicar da sua liberdade.
Naquela manhã de inverno, Elsa ia confiante para mais um encontro com seus amigos humoristas. Havia cuidados de segurança no edifício. Para entrar, era preciso ter uma senha. Havia ainda um policial no interior do prédio, e outra senha na porta blindada da sala da reunião. Mas ninguém imaginou, nem a própria polícia francesa, que dois homens bem armados atacariam o Charlie. Lembro que, depois, houve outros atentados em Paris, com mais vítimas.
Por que o Charlie Hebdo foi atacado? Há uma dificuldade em entender por que o humor é tão temido. Entretanto, todos os totalitaristas, amantes do pensamento único, atacam o humor. O livro Os Ditadores, de Richard Overy, sobre Stalin e Hitler, mostra como, nos regimes dos dois, artistas e humoristas foram perseguidos, presos e mortos. No Brasil, não mataram os humoristas do Pasquim, mas os prenderam. E, depois, o semanário de humor sofreu um boicote econômico dos empresários. Ao longo da História, o simples riso foi também atacado pelo fanatismo religioso, como se pode ler em O Nome da Rosa, de Umberto Eco. O Charlie Hebdo era o espaço do riso, das charges polêmicas, o lugar no qual Elsa tinha seu divã cultural. Os partidários do Todo Um são contra a liberdade da palavra, da graça, da irreverência.
Por que escrever sobre a psicanalista do Charlie? Serge Leclaire disse que a única coisa que um psicanalista aprende ao longo da vida é escutar. Creio que sim, mas aprende também a perguntar e, principalmente, a perguntar-se. Elsa Cayat criou uma ponte entre o mundo psicanalítico e o mundo do humor. Sou seduzido por ambos, porque vejo no humor uma ética que elimina toda forma de hierarquia, seja econômica, política ou religiosa. Uma ética em que os ricos podem revelar-se pobres de espírito, como se percebe na história na qual um ricaço judeu rezava e dizia “Sou nada diante de ti, Todopoderoso”, ao que um pobretão escutava e repetia “Sou também nada diante de ti, Todopoderoso”. O ricaço concluiu: “Veja só quem pretende ser nada diante do Senhor…”.
O Supereu do bem-humorado é benigno, e não sádico e severo. Goza da perfeição. Tolera as falhas. Aprender a jogar o jogo do humor é um caminho para se viver melhor. O humor nada na contracorrente, ao buscar o lado leve do peso da existência, o lado poético da vida prosaica. O humor não nega que a vida é mais para ser suportada. Enfim, o humor é um jogo em que introduz o gozo e a alegria no reino do princípio da realidade. O humor ensina que a vida pode ser vista também como um jogo de crianças.
Elsa Cayat foi corajosa na sua rebeldia, e são os rebeldes que buscam inventar a vida. As raízes da rebeldia são o desejo por novos caminhos, com um olhar diferente à procura de um sonho de mais justiça. Talvez eu não tenha respondido à pergunta sobre por que escrevo essa homenagem a ela, mas, em psicanálise, nunca se diz tudo ou se sabe tudo. O fanatismo tem uma só verdade, que julga ser a verdade total de tudo. Logo, odeia o humor. No dia 7 de janeiro de 2015, o terrorismo atacou o Charlie Hebdo para eliminá-lo. Poucos dias depois, a França teve 4 milhões de pessoas nas ruas como expressão da ética solidária. Hoje, o Charlie cresceu tanto no amor do povo francês como no mundo. Resistir à crueldade é uma forma de manter a graça da vida, a graça de criar um mundo melhor.
Encontro consigo mesmo
Um ano antes do atentado terrorista, Elsa Cayat foi entrevistada em psychologies.com. Vale a pena entrar no site para ler suas longas respostas. Aqui vai uma síntese, com suas palavras, do que ela disse. Elsa respondeu as perguntas ao vivo, durante uma hora, falando sobre a vida conjugal, a liberdade pessoal, o ciúme, a decepção, o sexo e o desejo. Expressou sempre sua confiança no amor – apesar de todos os problemas.
Perguntaram se era possível basear a vida no outro. Ela disse:
– Esse é todo o problema do amor. Não se trata de apoiar sua vida no outro, mas preservar sua vida para si, recentrar em si para poder abrir-se ao outro. Esse é o eixo central dos problemas do amor, um eixo do mito do amor. Um quer se apoiar no outro, quer descansar no outro, pois crê que o amor é a solução a tudo o que falta e assim demanda no outro o amparo a sua fragilidade. Mas isso é falso. O outro não pode preencher nossas faltas. Em geral se pensa que o amor é a solução a tudo o que falta, e então o outro vai nos curar. Repito: isso é falso. O outro não pode nos preencher completamente, e os problemas pessoais irão irromper. Para se resolver os problemas é preciso acertar-se consigo mesmo.
Elsa definiu o amor como um sentimento fluido, móvel, que muda em função de circunstâncias. É mais agradável amar do que não amar, ela ponderou. O problema é quando se idealiza o amor, e algumas pessoas sentem obrigação de amar. Isso mata o amor – o amor não é um dever. O amor não pode ser senão um desejo. É possível ser feliz no amor, em especial quando cada um tem sua vida própria. No amor importa saber que o outro é eleito por razões enraizadas na própria história. O outro fará ressurgir o passado, um passado esquecido, que se reativará na nova relação. Já os ciúmes são decorrentes da diminuição que se sente diante da idealização do outro.
Uma pergunta foi a velha afirmação de algumas mulheres que os homens sempre mentem. A psicanalista do Charlie Hebdo respondeu:
– De onde vem essa visão dos homens? Essa decepção certamente provém de uma expectativa irrealizável. Isso porque está deslocada. Em geral, corresponde a alguém da família de quem a cria.
Outra questão foi se era possível amar sem confiança. A resposta:
– Pode-se amar tendo confiança relativa. O outro existe, é um ser humano como a gente. Entretanto, é diferente da gente. A confiança que se precisa aprender é a confiança em si.
Elsa Cayat se formou em Medicina aos 21 anos, em Paris, e logo fez psiquiatria e psicanálise na escola lacaniana. É autora de Un Homme + Unne Femme = Qoui (“Um homem + uma mulher = o que é”) e Desir et la Putain – Les Enjeux Cachés de la Sexualité Masculine (“O desejo e a puta – Os desafios escondidos da sexualidade masculina”), este em coautoria com Antonio Fischetti. Era casada e deixou uma filha de 18 anos. Foi enterrada no trecho israelita do Cemitério de Montparnasse, em 15 de janeiro de 2015.