Publicado originalmente em Boitempo
O título do livro de José Arthur Giannotti publicado em 1986 continua válido e atual, mas o ritmo liberal que animava os problemas naqueles tempos evoluiu para uma espécie tecno-pop neoliberal e a barbárie desta vez não vem de fora, mas de dentro dos próprios muros da universidade. A recente aprovação pelo Conselho Universitário, órgão máximo de gestão da USP, de medidas que restringem o gasto com funcionários e a contratação de professores durante os próximos cinco anos é o marco desses novos tempos.
A USP de fato encontra-se em uma encruzilhada. Hoje, existem dois tipos de universidades bem sucedidas: as pequenas, bem especializadas ou dotadas de antiga tradição, que competem em primeiro plano na produção de tecnologia e na formação de pesquisadores de excelência; e as que têm um número maior de alunos, abarcando muitas áreas e patrocinando um ideal de formação mais genérico, com diferentes níveis de qualidade e excelência entre seus cursos de graduação e de pós-graduação. Harvard tem 22 mil alunos. Yale, 12 mil. Stanford, 16 mil. Cambridge, 20 mil. Oxford, 22 mil. Sorbonne (Paris IV), 23 mil. Juntas elas têm mais prêmios Nobel do que todas as outras universidades somadas. Do outro lado, a Unam, do México, com seus 342 mil alunos, a UBA, na Argentina, com seus 308 mil estudantes e as gigantescas universidades na Índia, Indonésia e Irã, que chegam a mais de um milhão de alunos. Elas são responsáveis por uma proposta de formação ampla, voltada para a inclusão da população, com esforços de pesquisa irregulares.
A USP com seus 94.865 alunos, o dobro de Unesp ou Unicamp, não se enquadra muito bem em nenhum destes dois perfis. Consegue manter-se entre as 150 melhores universidades do mundo, habitualmente entre as melhores da América Latina, mas possui um extensão e uma variedade de cursos de graduação e pós-graduação que a coloca no segundo grupo. Administra complexos hospitalares, zoológicos e museus, mas também possui bibliotecas especializadas, campi avançados e navios para expedições antárticas.
Em 2005, atendendo uma política nacional para ampliação de vagas, abre-se a USP-Leste (EACH), o que a faz receber 5 mil novos alunos. A confiança na previsibilidade das políticas públicas mostra-se aparentemente equivocada, pois estes 5% de expansão não foi acompanhado de um aumento proporcional na alíquota do ICMS, que é sua principal fonte de renda. A divergência entre o Governo Federal e Governo Estadual impede que o fim maior e comum, a educação pública, seja posto em primeiro lugar. Em 2009, o então governador José Serra nomeia João Grandino Rodas, o segundo na lista tríplice, reitor da USP. Sua gestão, que dá curso à expansão, é acusada de falir a universidade. Voltamos ao número mágico: 5% de déficit anual. Voltamos ao ritmo da sereia: o mesmo PSDB que indica um reitor perdulário, depois acusará seu sucessor de má gestão. O mesmo vice-reitor que trabalhou na gestão da gastança, agora usa a crise financeira para reduzir o tamanho e o investimento na educação universitária. Enquanto países competitivos investem massivamente em suas universidades, nós queremos jogar nosso caso mais bem sucedido ao mar.
Ulisses consegue ouvir o canto das sereias porque amarra-se ao mastro da embarcação enquanto coloca cera nos ouvidos dos seus marinheiros, que continuam remando. Nossos remadores profissionais continuam a repetir: “o Estado tem que diminuir seu tamanho”, “a improdutividade do serviço público tem que acabar”, “a injustiça do ensino público e gratuito para filhos de famílias ricas é um descalabro”. O governador, remando no estilo esquife individual, berra em alto em bom som: as pesquisas em ciências sociais e humanas são um desperdício. Seus deputados, no oito com, tentam desviar, a céu aberto, verba da Fapesp, especialmente destinada a pesquisa. O coro da Folha de São Paulo e do Globo continuam a recitar a cantiga da cobrança de mensalidades.
Nesse ponto, fico com outro jornal O Estado de São Paulo. Em 2009, antes da aplicação do SISU e da entrada das cotas, ele anunciava que o número de ingressantes na USP, da classe D, superava o das classes A e B. O G1 corrobora a mesma ideia mostrando que entre 1989 e 2014 a USP cresceu 96% em alunos e 6.8 em docentes.
Lembro também que, quando Paulo Renato Souza tornou-se Ministro da Educação, nos anos 1990, tempo em que eu dirigia uma pós-graduação em Psicologia, ouvi que a liberação da abertura de novas universidades, com regras claras para contratação de doutores, criaria uma benéfica concorrência para as universidades públicas e incentivar a luta por qualidade entre as universidades privadas. Resultado: nem um nem outro. Logo depois veio o golpe do “demita você também seu doutor” (afinal ele custa caro), em seguida veio o golpe do FIES para inglês ver, depois a chegada dos grandes grupos educacionais americanos e agora chineses. Onde está o princípio da concorrência? Por que, depois de 30 anos, o mercado ainda não produziu uma quantidade substancial de universidades na ponta da tabela nacional ou internacional? Por que ainda hoje, das 15 melhores universidades brasileiras, apenas duas não são públicas?
Apesar da proporção professor-aluno já estar abaixo da média para as universidades semelhantes, apesar de 33% do tempo dos professores ser gasto com serviços administrativos, apesar da qualificação específica requerida por seus funcionários, apesar da expansão de sua política de cotas, apesar dos salários sensivelmente menores de seus pesquisadores em relação a seus concorrentes asiáticos ou norte-americanos, o novo ritmo de austeridade é irresistível e pegou carona no clima anti-intelectualista que levou Temer ao poder.
Mas o ritmo é uma coisa, a barbárie é outra. Em março de 2016, o Conselho Universitário da USP votou uma emenda que reduz a contração de professores e a proporção de funcionários, até chegar a 80% da folha de pagamento em cinco anos. Fruto de um estatuto promulgado em 1963, em grande medida responsável por muitos anacronismos e debilidades institucionais, apenas 53 professores votaram por essa guinada de investimentos. Ou seja, ao invés de propor uma nova Estatuinte e discutir um novo começo para a USP, com outras regras, mais adaptadas aos tempos de dificuldades, o reitor escolhe redução de gastos e austeridade concentrada. Em vez de discutir alternativas de financiamento, reformular o sistema de doações e sanar o imbróglio jurídico que cerca seu patrimônio em imóveis, o caminho escolhido é o de reduzir e sucatear para depois vender. Há muitos anos, pessoas que morrem sem deixar herdeiros têm seus bens delegados para a USP, mas o sistema para vender tais imóveis é curiosamente complexo e moroso. As contas da USP não conseguem alcançar um nível de transparência elementar.
No mesmo dia, manifestantes são escorraçados com bombas e a polícia guarnece a entrada dos 53 professores que decidiram nosso futuro. Professores e funcionários são agredidos e a polícia é convocada para exercer sua violência. Casos de estupro na faculdade de Medicina são tratados com leniência. Vagas em creches são fechadas, prejudicando sensivelmente as mulheres que precisam trabalhar e estudar, sistemas de apoio e suporte aos estudantes menos favorecidos são cortados, laboratórios com anos de investimentos em pesquisa são legados a sua própria sorte. Pode-se dizer que o país está em crise e que todos precisam fazer sacrifícios. Mas será mesmo que em alguns casos a crise não é o pretexto ideal para exercer vinganças políticas e resolver diferenças na base da força? Se no lugar onde a palavra deve ser o princípio fundamental do poder, praticamos a violência gratuita, o que esperar para o nosso funcionamento social? Se não é na USP que poderíamos inventar outras e novas formas de tratar os conflitos, então onde seria?
A nova barbárie não vem de fora, ela vem de dentro da própria USP. São 6.090 professores, 17.199 técnicos-administrativos, 59.081 alunos de graduação e 30.039 alunos de pós-graduação. Mas apenas 53 marinheiros surdos, muito menos do que 5% dos envolvidos, são suficientes para nos levar aos rochedos. Tudo se passa como se no momento em que as classes menos favorecidas chegam à universidade, é hora de fechá-la transformando-a em outra coisa. Agora que o ENEM serviu para mudar a regra de acesso é hora de mudar a regra e talvez acabar com o ENEM.
Giannotti participou do início da aventura do PSDB na educação, chegando a trabalhar no governo de Fernando Henrique Cardoso. Seu diagnóstico de 1986 ainda permanece vivo. Falso, mas vivo. Atual e cintilante, animando os remadores de Ulisses:
“A universidade é o paraíso das classes médias, o lugar por excelência de suas práticas, o terreno onde se articulam seus ideais. De uma maneira muito peculiar combina o fazer e o fazer de conta, tanto a prática do conhecimento, como o conhecimento da prática. Escapando dos procedimentos socialmente objetivos de mensuração, transforma a docência, o aprendizado e a pesquisa numa dança ao mesmo tempo inútil e formadora, vazia e cheia de significados sociais.”
Giannotti, J.A. A universidade em ritmo de barbárie. São Paulo, Brasiliense: 1986. p.46.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.