“Face hipocrática” – Por Alexandre Pandolfo

“Face hipocrática” – Por Alexandre Pandolfo

Em meio à folha de papel rabiscada, o pensamento às vezes para. Emaranhado às valas comuns ou ao vasto oceano. Desgraça inominável e vergonhosa. Ainda outras advirão amanhã e depois. Repetindo palavras contestáveis, talvez obliteradas. É uma só a linguagem jurídica do golpe civil e midiático e a linguagem precária do justiçamento feito por meio dos diversos tribunais. A linguagem da burla. A linguagem da impostura. Não se deixa atordoar pelos murros que outros levam na cabeça. Apenas senta-se sobre o mundo. Aparenta ausentar-se. E entre visões concretas esboçam-se fantasmagorias. Uma mal disfarçada ditadura, um congresso de lacaios figurados, absolutamente interessados em conservar privilégios. Desenvolvem a conversação como vício. Junto às sentenças dos tribunais, que são formalidades inconsequentes. Incrivelmente amparados por determinados conhecimentos filosófico-biomoleculares. E pelo interesse exclusivo na propriedade e na miséria do mundo. Patriarcado bíblico. Dirigido por conhecidos patrões do exterior. Oficialmente covardes. Mensageiros da morte. Ao norte. Anunciam de quando em quando, e ainda hoje, misteriosos suicídios. ¿Nosotros no sabíamos? Complacência e concupiscência. Marcadamente estúpida. Como são estúpidos todos aqueles que assistem e promovem telenovelas e telejornais. Que promovem a desleitura. A idiotia calculada. São a imagem do completo desespero sem consciência do sombrio mal-estar no qual estão submersos. É bem sabido que no Brasil oligárquico de sempre toda e qualquer “ordem” foi sucessivamente aparência. Simulacro. Burla. A judicatura, um espantalho. A farda, língua arcaica. Velhice e estabilidade aos torturadores de ontem e de hoje. Ruína, ruína, ruína. E confusão. Tudo para dar ao burguês dramalhão assíduo direito; o comprador da imprensa marrom, a impressão, apenas a impressão do capital sob o qual correm toneladas de sangue e lama. Com isso a opressão se erige em sistema. O oprimido firma-se ora numa ora noutra perna. O espinhaço curvo. Como a vida sem valor. Isso realiza empiricamente o absurdo. Mas não interessa à democracia neurofilosófica discuti-lo. Perdem-se séculos na definição do absurdo, enquanto ele se realiza faticamente, corpos sobre corpos, ruínas sobre ruínas. E qual seria o interesse de determinadas filosofias surdamente comprometidas em inocentar-se? Inocertar-se. A filosofia judicativa e biométrica não se compromete, contudo, com a criação de palavras. Com criação nenhuma, para o entendedor médio. Apenas tampa a tampa da catacumba. Eternamente compromete-se apenas com o que se pode dizer. O que não se pode dizer, dever-se-ia não dizer. Talvez temer. E esse é o rosto do status quo. O rosto do ar escasseado. O rosto indiferente da insciência. Frente aos mortos vivos em decomposição. Não fere o olhar oligarca ou burguês o olho caído do outro, os corpos diversos encharcados na lama, presos na lama para nunca mais, faltando-lhe o espírito que o grande todo patriarcal do estado entregue ao capital minerador levou, coberto de desonra. Os dirigentes tem pressa em dispensar a conscientização. Aparafusam-se em determinadas cabeças a repetição da crueldade. Não se trata de mera ilusão. É literal. Trata-se de desejar não saber o que aconteceu, ignorar não as próprias as ações, mas as ações dos outros, ser joguete das circunstâncias, cujos estragos e ferimentos nem sempre cicatrizam. Estão barbaramente às vistas. É parte do método do esquecimento. Toda uma escolarização política histórica trabalhando para a legitimação da violência, seja no nível que for, sempre que for necessário. Seria prudente citar nomes? Ou só dos carrascos? O direito corrupto, a democracia cooptada, o governo a disfarçar as mazelas e restaurar as cores dos banquetes. Com que diabos ainda fazer ficção? Revoltar-se contra o monopólio “legítimo”, contra o uso genocida da força química armada? O poeta morre a cada outro oprimido que encontra. E nos ordenamentos mais banquete, não apenas pela morte do poeta, mas pelo desejo lógico de não mais poema, não mais arte, tampouco educação. Crise, crítica. Crise. Esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, ao que meramente é. A oligarquia sorri, bate panela com a burguesia. Essas panelas não fazem feijão para preto. Nem para pobre. A cada carcaça que passa carregando uma memória ou um suspiro de vida, mais gargalhadas. E ódio. Até onde seremos todos levados não é um mistério. É o ministério do fim. Um curral de arame farpado, o rebanho a definhar. O que vivemos hoje, desde há muito, a título de sociedade, a inevitabilidade do cativeiro. Isso se representa como um progresso efetivo da humanidade. O que sobrar, depois do fim, serão já as memórias dos cárceres de agora. Somos cadáveres que ainda se mexem. Gracialianos. Nisso reflete-se algo da humanidade. Parcamente. “Ossuário de interioridades putrefatas”, como escreveu Lukács. E o estado de contrarrevolução se realiza dentro das normas. É preciso exceder o estado de exceção. A degradação exposta, nua e bárbara. A gramática da barbárie. Exceder a gramática em si. O deleite da elite corrupta e golpista. A irracionalidade. Exceder a desvergonha dos dirigentes do estado das coisas.